Fatores degradantes em sítios de arte rupestre: revisitando o Boqueirão do Riacho das Traíras, no municipio de Sento Sé-Ba

Sebastião Lacerda de Lima Filho. Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial. Universidade Federal do Vale do São Francisco-UNIVASF, PI. Mestrando em Arqueologia e Interfaces Disciplinares - PROARQ/UFS, Laranjeiras, SE. e-mail: arqueologiasebast@yahoo.com.br.

Celito Kestering.
Dr. em Arqueologia.  Professor Adjunto 3. Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, São Raimundo Nonato, PI.

Elizabete de Castro Mendonça.
Dra em Museologia. Professora do Núcleo de Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia. Universidade Federal de Sergipe-UFS, Campus de Laranjeiras, SE.

Suely G. Amâncio-Martinelli.  
Dra em Arqueologia. Professora do Núcleo de Arqueologia e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia. Universidade Federal de Sergipe-UFS, Campus de Laranjeiras, SE.  



RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal discutir o estado de conservação dos sítios de Arte Rupestre localizados no Boqueirão do Riacho das Traías, no município de Sento Sé – BA, Submédio São Francisco. Enfatiza-se no mesmo questões ligadas a degradação de caráter antrópica e a degradação de ordem natural. A primeira pode esta ligada ao distanciamento da população local acerca do referido patrimônio. Já a segunda é inerente ao próprio meio. Contudo vêem sendo acelerada pela presença do fator antrópico em toda a área. Considera-se que medidas preventivas básicas podem ser tomadas para retardar a degradação dos mais diferentes painéis de pinturas rupestres. Por fim, propõe-se uma gestão desse patrimônio ligando-o a população local, uma vez que a mesma é de fato a mais segura guardiã dessa herança cultural que aos poucos vêm sendo descoberta, estudada e divulgada, não apenas no meio acadêmico, mas para a população em geral.

Palavras-chave: Pintura Rupestre. Estado de Conservação. Boqueirão do Riacho das Traíras


ABSTRACT

O presente trabalho tem como objetivo principal discutir o estado de conservação dos sítios de Arte Rupestre localizados no Boqueirão do Riacho das Traías, no município de Sento Sé – BA, Submédio São Francisco. Enfatiza-se no mesmo questões ligadas a degradação de caráter antrópica e a degradação de ordem natural. A primeira pode esta ligada ao distanciamento da população local acerca do referido patrimônio. Já a segunda é inerente ao próprio meio. Contudo vêem sendo acelerada pela presença do fator antrópico em toda a área. Considera-se que medidas preventivas básicas podem ser tomadas para retardar a degradação dos mais diferentes painéis de pinturas rupestres. Por fim, propõe-se uma gestão desse patrimônio ligando-o a população local, uma vez que a mesma é de fato a mais segura guardiã dessa herança cultural que aos poucos vêm sendo descoberta, estudada e divulgada, não apenas no meio acadêmico, mas para a população em geral.

Word-Keys: Rock Painting. State of Conservation. Boqueirão do Riacho das Traíras, Sento Sé – BA.


1. INTRODUÇÃO

A arqueologia Pré-Colonial fixou-se como a ciência capaz de contribuir para o resgate de grupos que diferente de períodos históricos não detinham a escrita, no sentido comum, utilizado nos dias atuais. Não que esses grupos não detivessem conhecimentos suficientes para representar a vida, mas talvez por escolhas relativamente particulares preferissem representar o mundo sensível e o abstrato da sua própria maneira. Tendo nessas escolhas características próprias e particulares que permitiram sua própria legitimação e diferenciação cultural. Partindo dessa premissa, considera-se os estudos dos grafismos rupestres nessa pesquisa como um meio de comunicação - uma pré-escrita (se assim pudermos considerar) que os mais diferentes grupos utilizaram para imprimir no seu próprio meio a realidade que eles vivenciavam e conheciam.

Entendemos que cada grupo tem sua forma de lidar com os eventos da vida, seja ela reservada ou em comunidade. E revelam no seu próprio meio suas crenças, costumes e anseios. O meio por si só não é relevante, mas a junção do mesmo com o fator humano e a produção deixada por ele é a essência da pesquisa arqueológica em seus mais diferentes objetos de estudo.

Os estudos em Arte Rupestre diferente dos séculos passados ganharam relevante importância na pesquisa arqueológica atual (1980). Sabe-se que o mesmo agrupado com outros elementos permitem uma caracterização e identificação de grupos culturais que habitaram, interagiram ou passaram por uma determinada região. Percebeu-se a variedade de informações que o estudo desses vestígios poderia proporcionar. Da década de 70 aos dias atuais, essas pesquisas vêm sendo realizadas de maneira sistemática permitindo com isso reflexões mais detalhadas e informações bem mais coerentes sobre diferentes ocupações realizadas por “varias levas” de indivíduos em todas as regiões brasileiras.

Na Área Arqueológica de Sobradinho – BA os primeiros sítios de Registros Gráficos foram identificados na década de 70, durante as atividades do Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico, os mesmos foram parcialmente descritos, mas não se aprofundaram a pesquisa nesse tipo de vestígio, até o ano 2000 quando o professor Kestering passou a pesquisá-los de maneira sistemática. As pesquisas em toda a região vêem ganhando fôlego e alguns trabalhos – principalmente voltados ao estudo das pinturas rupestres da área – vêm sendo realizados, principalmente por estudantes do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Monografias e dissertações começaram a surgir, demonstrando com isso a riqueza e a diversidade dos vestígios arqueológicos de toda a região. Contudo, consideram-se essas pesquisas ainda incipientes dado o potencial da área.       

Assim, na tentativa de contribuir para a ampliação dos estudos na região, pretendemos nesse trabalho levantar algumas considerações acerca do estado de conservação dos sítios de Arte Rupestre do Boqueirão do Riacho das Traíras, no município de Sento Sé – BA, Submédio São Francisco, inserido na Área Arqueológica de Sobradinho – BA. Essa unidade de pesquisa é composta de 11 sítios com pintura rupestre e dois com ferramentas líticas. Totalizando 13 sítios arqueológicos que precisam ser estudados, preservados e divulgados. Nos mesmos identificou-se 94 painéis, com um total de 195 unidades de pinturas rupestres das quais 12 (6%) são conhecíveis, 153 (79%), reconhecíveis e 30 (15%), irreconhecíveis. A constatação de que as pinturas reconhecíveis são dominantes permitiu classificar o conjunto de pinturas do Boqueirão do Riacho das Traíras na hipotética Tradição São Francisco (LIMA FILHO, 2010).

A referida unidade foi tema de pesquisa realizada por CORREIA (2008) e LIMA FILHO (2010). Ambos os trabalhos para conclusão de curso de graduação. O primeiro tinha como objetivo demonstrar as diferentes formas de leitura da arte rupestre. Foi um trabalho de caráter mais generalizante.

Já o segundo, centrou-se numa pesquisa mais detalhada, onde buscou-se  identificar a temática dominante nos painéis de pintura rupestre, na tentativa de filiar os mesmos a Subtradição Sobradinho amplamente caracterizada na região em apreço e ainda inserir esse grupo de pinturas numa Tradição maior, a análise permitiu associá-las a Tradição São Francisco.  É respeitável ressaltar a importância dos mais diferentes olhares para a compreensão da arte rupestre da região. Contudo, ao observarmos a primeira e a segunda pesquisa nota-se de maneira alarmante o acelerado desgaste e desaparecimento de muitos dos painéis de pintura rupestre da unidade de pesquisa.

Assim, considera-se pertinente a discussão acerca da noção de preservação - entendida como uma categoria maior - e conservação (subcategoria de análise) na tentativa de gestão desse patrimônio uma vez que estudos detalhados em toda a área permitirão informações significativas para posicionamento do mesmo num quadro de caráter espacial e temporal. É provável que a quantidade de painéis (e de grafismos isolados) seja, atualmente, apenas uma rasa parcela do potencial maior que a unidade de pesquisa em questão deveria apresentar no passado.

Portanto avalia-se que medidas de prevenção (quadro de discussão mais amplo) e conservação (subcategoria de analise presente na discussão acerca da preservação) desse patrimônio sejam tomadas na tentativa de retardar o seu desaparecimento. Propõe-se ainda que uma educação patrimonial em larga escala seja de fato iniciada em toda a região, na tentativa de despertar interesse por parte da população, uma vez que as mesmas estão localizadas muitas vezes em povoados relativamente próximos aos sítios. Uma vez despertado a noção de pertencimento e de identificação com esse patrimônio o mesmo poderá durar mais algumas dezenas de anos. Avalia-se a possibilidade de transformar alguns desses locais – sítios de arte rupestre – em museus a céu aberto, áreas de visitação in situ devidamente estruturada.

Busca-se com isso de maneira direta desenvolver a clara relação de identidade por parte das comunidades dos entorno desses referidos sítios. Uma vez desenvolvida essa relação de pertencimento no que tange a preservação/conservação desses vestígios, os mesmos estarão assegurados por algumas dezenas ou mais algumas centenas de anos e proporcionará dados para posicionar as ocupações de toda a região num espaço e num tempo, bem mais seguro.

 

2.   PRESERVAÇÃO X CONSERVAÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Durante muitos anos a comunidade arqueológica internacional se debateu em busca de mecanismos que permitissem uma compreensão do patrimônio arqueológico em suas diversas formas. Discutiu-se amplamente questões acerca da preservação e divulgação das informações a respeito do mesmo. O próprio ato de preservar certos elementos materiais em detrimento de outros implica em escolhas particulares por parte dos indivíduos envolvidos no processo (BRANDI, 1971). Nesse aspecto observa-se o valor político e social da ciência arqueológica.

Concordamos com KESTERING (2003) quando o mesmo afirma que preservar implica em salvaguarda e divulgação de maneira objetiva de um referido patrimônio e os seus diversos acesso a sociedade em geral, contribuindo assim para sua proteção e super-valoração.  Compreendemos que a noção de Preservação tem um sentido mais amplo. Segundo Cassares “é um conjunto de medidas e estratégias de ordem administrativa, política e operacional que contribuem direta ou indiretamente para integridade dos materiais”.

E entendemos nesse trabalho a noção de preservação como “a manutenção no estado da substancia de um bem e desaceleração do processo pela qual ele se degrada” (GONZÁLEZ-VARAS, 2000).

O amadurecimento reflexivo tanto de ordem teórica quanto metodológica da arqueologia nas três ultimas décadas, vem proporcionando uma caracterização e um manuseio mais sistemático no que tange a relação com o patrimônio arqueológico histórico e/quanto pré-histórico. No futuro políticas públicas no trato desse patrimônio, com certeza abarcarão diversos outros elementos que a pesquisa atual ainda não visualiza, contribuindo assim para salvaguarda de uma quantidade expressiva de elementos materiais das populações do passado

A tentativa de desenvolver mecanismos no que tange a preservação do patrimônio cultural passa a ser assunto internacional a partir da divulgação da carta de Atenas em 1931. O interesse pela preservação e manutenção de obras feitas pela humanidade tem início em meados do ano 13 a.C. em cidades como Roma (Caldeira, 2006). Vindo a ter as primeiras atividades de restauro, de um bem aceito como patrimônio, entre os séc. XVIII e XIX (Luso et al, 2004. Apud in. BARROS, 2009).

A carta de Atenas torna-se, então, um marco para a sistematização das atividades de manutenção dos bens culturais, sendo um guia inicial para o desenvolvimento das atividades de restauro. Ela dispõe, principalmente, sobre como tratar o patrimônio edificado, as obras de arte e os monumentos históricos, porém deixa a desejar quando se trata de sítios arqueológicos pré-históricos.

Seguindo a linha para o estabelecimento de diretrizes, são elaboradas diversas outras cartas patrimoniais, bem como entram em debate questões de cunho crítico acerca de o que preservar, como e por quê. Estudiosos e teóricos, destacando-se Eugéne Violletle- Duc (séc. XIX), Alois Riegl (fins do séc. XIX, início do séc. XX), Jonh Ruskin (década de 1980) e Cesari Brandi (década de 1980) discutem essa questão ao longo dos anos, levantando questionamentos acerca da Teoria da Conservação e do Restauro, buscando estabelecer princípios básicos para sua execução (Luso et al, 2004). Porém estes autores direcionaram-se exclusivamente para o patrimônio edificado, não estando os sítios arqueológicos pré-históricos incluídos em seus discursos (KESTERING, 2003; BARROS, 2009).

No âmbito da conservação dos sítios arqueológicos, tem-se destaque para as diretrizes expostas nas seguintes cartas: Carta de Veneza 1964, Carta do Restauro produzido na Itália em 1972 e a Carta de Burra na Austrália em 1980 (Lage, 2005).

A Carta do Restauro (1972 p.1), oferece diretriz mais completa e especificada, pois contêm anexos que dispõem sobre os monumentos arquitetônicos, pictóricos, esculturais, conjuntos históricos, incluindo normas para serem seguidas durante a realização de escavações. Dispõe, especificamente, sobre cada tipo de material que pode ser encontrado nesse tipo de intervenção arqueológica, inclusive sobre a manutenção de pinturas em cavernas. Porém, isto não se aplica aos sítios de tipo abrigo sob rocha, que são os sítios onde geralmente se localizam os paredões pintados na área arqueológica de Sobradinho – BA.

As intervenções de restauro não se aplicam aos sítios arqueológicos pré-históricos, pois a restauração só pode ser efetivada se existirem dados suficientes que testemunhem um estado anterior da substância do bem. O que em Sítios Pré-históricos muitas vezes se perdeu. Não se pode restaurar um sítio arqueológico, pois não há registro de como o mesmo encontrava-se, durante as primeiras ocupações humanas. É impossível obter-se o estado em que se apresentava um paredão rochoso na época da execução dos registros rupestres. É impossível, também, saber como eram as partes perdidas das pinturas rupestres ao longo das centenas de anos.

Os sítios arqueológicos são considerados um bem cultural da humanidade. Quando se trata de sítios com registro rupestre acrescenta-se a ele o valor de patrimônio natural (Lage, 2003), cuja valoração vem crescendo, considerando-se que a interação homem e meio ambiente é o cenário onde é forjada sua identidade cultural (González- Varas, 2000).

Concordamos com González-Varas (2000), quando a mesma reconhece que a conservação dos testemunhos históricos e Pré-históricos é um dos grandes problemas de nosso tempo, por estar diretamente ligada ao equilíbrio ecológico e ambiental, sendo que o primeiro garante a preservação da memória histórica e identidade cultural de um povo, e o segundo significa a própria sobrevivência do homem. Como apresentado anteriormente, os sitos arqueológicos com registro rupestre encaixam-se nas duas categorias acima citadas, podemos afirmar então, que para preservá-los encaramos uma dupla dificuldade.

A conservação dos sítios com pinturas rupestres está diretamente ligada ao equilíbrio ambiental e fatores de degradação natural, devido ao suporte material ou substância em que as pinturas se encontram, que é um suporte rochoso que está exposto constantemente a fatores de degradação. Para manter e transmitir o patrimônio representado pelas pinturas rupestres são realizadas atividades de conservação no suporte material que as contém, segundo González-Varas (2000 p.74) as atividades de conservação são:

(…) operaciones cuya finalidad es prolongar y mantener el mayor tiempo possible los materiales de los que está constituido el objeto; operaciones características de conservación son el análisis de los factores de deterioro, la prevención del deterioro, el control de lãs condiciones ambientales, la intervención sobre el ambiente, el control del estado de conservación del objeto, el mantenimiento ordinario y La intervencíon directa de conservación.

Dentro do universo da conservação se pode distinguir as intervenções indiretas e a intervenções diretas que precederiam o restauro na busca pela manutenção de um bem histórico, pois a restauração é considerada como última alternativa de ação para a preservação do bem histórico. Porém, ela é inviável de ser aplicada em um sítio arqueológico pré-histórico, pois busca reparar um objeto tendo como base documentos que apresentem seu estado anterior a deterioração, documentos estes que não existem quando se trata desse tipo de sítio arqueológico (GONZÁLEZ-VARAS, 2000).

Na Área Arqueológica de Sobradinho – BA esse noção de preservação e de conservação de um patrimônio particular, único e sensível ao desaparecimento, apenas começou a ser pensada e estruturada a partir do ano 2001 quando estudos detalhados dos grafismos rupestres foram de fato realizados (KESTERING 2001/2010). A pesquisa anterior realizada na década de 70 teve como objetivo principal apenas o comprimento das normas legais estabelecida pela nação, pouco valor ao potencial da mesma e a salvaguarda do mesmo foram levadas em consideração. Contudo é mérito o mapeamento parcial realizados pelo referido projeto (LIMA FILHO, 2010).
 

3. BOQUEIRÃO DO RIACHO DAS TRAÍRAS: ESTADO DE CONSERVAÇÃO DAS PINTURAS RUPESTRES

Apesar da importância dos registros gráficos para a compreensão da cultura de extintas populações, os mesmos nem sempre têm recebido a devida atenção. As pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras (Fig. 01) e de muitas outras feições de relevo da Área Arqueológica de Sobradinho encontram-se expostas a diversos fatores que, em alguns momentos contribuem para a sua conservação e, em outros, de maneira mais constante, para a sua degradação.

Figura 01 – Relação espacial da feição de relevo com o povoado mais próximo.

Devido à ausência de políticas de conservação e de educação patrimonial em todo o Município de Sento Sé – BA, as pinturas rupestres nem sempre tiveram a devida atenção. Foi e é constante a destruição causada pelo vandalismo, tendo as pichações e as queimadas como fatores principais. É possível que os pichadores não tenham a intenção de descaracterizar as pinturas. É provável que os responsáveis pela depredação patrimonial desconheçam o valor simbólico agregado ao registro que está sendo destruído (Fig. 02). Muitas vezes as ações partem de um desconhecimento da importância do local, resultando em grafitagem com tintas e pigmentos diversos, picotagem com materiais perfurantes, o que na maioria das vezes é irreversível, fuligem provocada por queimadas e acumulo de lixo que atrai mais insetos para o sítio.

Figura 02 – Destaca-se na fotografia uma pichação sobre um painel de pintura rupestre

Além da prática freqüente da pichação, encontra-se também vestígios de queimadas que contribuem de maneira significativa para a destruição do patrimônio arqueológico. Para ver-se livre de plantas que considera daninhas, a população local põe fogo na macambira e em outras espécies vegetais fixas nos suportes. Queima, assim, a mata nativa e provoca a destruição de painéis inteiros de pintura rupestre (Fig. 03).

Contudo, não são as ações antrópicas as únicas responsáveis pela degradação de sítios arqueológicos. As ações naturais do meio ambiente também contribuem na destruição de painéis de pintura rupestre. Atuam aspectos geomorfológicos, geológicos, a água, o vento, o sol, os insetos e as raízes de plantas fixas nos suportes. Essas ações realizam o intemperismo que contribui para a degradação dos grafismos. Esses processos causam a desagregação das rochas, com separação de grãos minerais antes coesos e com sua fragmentação, transformando a rocha inalterada em material descontínuo e friável, constituindo assim o que conhecemos como intemperismo físico.

Esse reagente atua de forma mecânica criando fraturas que se alargam com o tempo até causarem a desagregação do suporte rochoso. Esse processo de fratura da rocha é conhecido também como desplacamento, pois muitas vezes placas inteiras se desagregam do suporte.

Um dos principais agentes do intemperismo físico são as variações de temperatura. Ao longo das estações do ano e do próprio decorrer do dia, a oscilação na temperatura do ambiente causa expansão e contração térmica no suporte rochoso, o que leva a fragmentação dos grãos minerais (LARGE, 2006).

Já o intemperísmo químico altera a constituição mineral da rocha, transformando os minerais existentes em outros. A água é o principal agente de intemperísmo químico, pois ela infiltra e percola a rocha. O intemperismo químico ocorre por hidratação, dissolução, hidrólise (total ou parcial), acidólise (total ou parcial) e oxidação.

Existem outros fatores de degradação que não se encaixam nos agentes físicos e químicos de atuação, alguns autores os classificam como intemperismo biológico (Lage, 2005). O intemperismo biológico consiste na ação de microorganismos vivos que atuam na decomposição da rocha, por isso alguns autores o denominam de intemperísmo bioquímico. Esse tipo de intemperismo atua pela ação de bactérias, fungos, liquens, algas, insetos (principalmente térmitas e vespas) e pela ação de vegetação (LARGE, 2003).

Figura 03 – Destaca-se em vermelho escarpas chamuscadas pelo fogo no sítio Escarpa da Coroa de Frade

Mesmo sendo um processo lento e quase imperceptível, o vento é responsável pela abrasão que desgasta a rocha, fazendo com que os pigmentos que compõem as inscrições rupestres sejam desprendidos da parede rochosa.

Ainda que alguns painéis estejam protegidos por reentrâncias da rocha, a maioria encontra-se exposta aos raios solares que promovem a descoloração das pinturas. O problema da exposição dos painéis de pintura aos raios solares pode ser resolvido com a preservação da mata ao longo dos paredões rochosos.

A chuva é outro fator que ajuda a destruir o patrimônio arqueológico, quer seja pelo impacto direto sobre as pinturas ou mesmo pelo escorrimento da água sobre as mesmas. O fluxo da água da chuva é responsável pelo desaparecimento de muitas pinturas, porque desgasta os seus pigmentos ou cobre-os parcial ou totalmente com minerais dissolvidos da rocha (KESTERING, 2006). Nos sítios encontrados, esse tipo de degradação é constante. Muitas pinturas estão parcialmente encobertas por uma camada de sedimentos minerais na cor branca (Fig. 04).

Figura 04 – Em amarelo minerais de cor branca cobrem painéis de pintura rupestre

Para evitar que este processo seja responsável pela descaracterização dos sítios, deve-se adotar medidas profiláticas como a instalação de pingadeiras que desviem o curso da água, de modo que esta não atinja as pinturas. Esta ação é feita em vários sítios arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, na região sudeste do Piauí onde, com esta medida de conservação, pôde-se notar um grande avanço no processo de consolidação e preservação das pinturas rupestres (LAGE, CAVALCANTE e GONÇALVES, 2007).

Os insetos também degradam painéis de pintura rupestre. Abelhas, vespas e cupins estabelecem-se sobre as pinturas. Ao serem retiradas as suas casas, fragmentos das pinturas desprendem-se da parede, deteriorando parte desse patrimônio (Fig. 05). Para que este processo de degradação seja evitado, é necessária a manutenção de animais nativos como o tamanduá que se alimenta de cupim e os pássaros que se alimentam de insetos, no entorno dos sítios. Eles evitam a proliferação destes insetos que deterioram os painéis de pintura rupestre, mantendo o equilíbrio ambiental que ajuda a conservar o patrimônio arqueológico (PUCCIONE e FIGUEIREDO, 2006).

São também responsáveis pela degradação das pinturas os microorganismos, como os fungos que se vê sobre as paredes rochosas. O seu estabelecimento sobre as pinturas faz com que estas sejam danificadas pela ação corrosiva de ácidos húmicos ou no momento de sua retirada. O melhor controle da ação dos fungos pode ser a aplicação de produtos químicos que deve ser realizada com grande observação, para que esta não interfira na composição do painel (LAGE, 2007).

É necessária a compreensão de que as ações naturais são irreversíveis. Elas são causadas pelos aspectos inerentes ao meio, como a degradação natural da própria rocha, os afloramentos minerais, a penetração hídrica que atinge a rocha, a expansão e retração da mesma pela incidência solar (ainda que esta seja calculada em escalas milimétricas), o estabelecimento de insetos ou mesmo o seu desprendimento. Em comum, estes conduzem a um mesmo resultado inevitável que é a perda do patrimônio e das informações nele contidas.  Portanto nota-se a necessidade de desenvolvimento de medidas preventivas para os sítios rupestres de toda a região.

Figura 05 – Em verde destaca-se casas de Maria pobre sobre painéis de pintura rupestre



4.  A ARQUEOLOGIA NA REGIÃO E SUA RELAÇÃO COM A POPULAÇÃO LOCAL

A arqueologia surgida como uma ciência altamente elitista e fechada começou a caminhar na busca pela uma maior interação com a comunidade em geral. Na Área arqueológica de Sobradinho – BA, constituída por cinco cidades (Sobradinho, Sento Sé, Campo Formoso, Jaguarari e Juazeiro) as pesquisas amplamente realizadas do ano 2000 até os dias atuais tem buscado caracterizar e diagnosticar o vasto potencial arqueológico da região.

Para identificação desse potencial a população da área é de fato as principais responsáveis, já que a mesma são as que de fato vivem e conhecem os locais onde estão às botijas velhas, os letreiros dos índios, o lugar dos encantados e são eles, principalmente os mais velhos que conhecem onde localizam-se as casas dos caboclos bravos. A população em geral, os moradores nos seus mais diversos graus sociais (intelectual, econômico e cultural) são os responsáveis pelas informações sobre a existência desses locais. Ainda que a população em geral (principalmente os mais jovens) ainda não tenham desenvolvido uma relação nítida e ampla de identificação com esse patrimônio cultural, nota-se que uma grande parte dos mais velhos reconhecem, admiram e respeitam esses vestígios.

Alguns deixam comida, fumo e rezam próxima aos letreiros numa tentativa de relacionar o seu presente com a vida dos seus antepassados que ali viveram. São os primeiros daquela terra os que deixaram, criaram e reconstruíram histórias (SANTOS 2010 – comunicação pessoal).

Apesar da discrepância em se atribui significados e construir noções de identidades, relação de identificação e de pertencimento a arqueologia em geral (e especificamente à da região) ainda parece devagar em como devolver, ou seja, como realizar uma extroversão do conhecimento produzido durante suas mais diferentes atividades. Partindo do pressuposto de que a população em geral são de fato os verdadeiros herdeiros desse patrimônio, é de fundamental importância a sua divulgação. Consideramos que a arqueologia, por si só, sem a relação com a população não tem sentido algum, uma vez que, sem isso, não pode contribuir para o resgate da auto-estima coletiva dos sertanejos da região. No que se refere à arqueologia praticada especificamente na Área Arqueologia de Sobradinho, observa-se uma tentativa exaustiva de desenvolver e na maioria das vezes de ampliar junto às comunidades a noção de pertencimento no que tange a seu patrimônio.

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessa pesquisa, apresentamos os principais fatores que vêem contribuindo para destruição dos sítios de Arte Rupestre, na Área Arqueológica de Sobradinho – BA. O estudo de caso foi especifico, mas os elementos de degradação são comuns em toda a área arqueológica. Observou-se a necessidade de desenvolvimento de medidas preventivas para todos os sítios de registros gráficos do Boqueirão do Riacho das Traíras.

O estado atual desses sítios demonstra a sua fragilidade perante os fatores naturais, biológicos e antrópicos tão presentes na unidade de pesquisa em apreço, bem como em toda a Área Arqueológica de Sobradinho – BA. Medidas preventivas (diretas e indiretas) in situ devem ser realizadas para retardar o desaparecimento desses vestígios arqueológicos.

Dentre elas, como bem colocou Kestering (2003) em trabalho direcionado ao Boqueirão do Riacho São Gonçalo, localizado a apenas 11 km em linha reta da unidade de pesquisa trabalhada aqui (Boqueirão do Riacho das Traíras) destacamos que se apliquem medidas que preservem a harmonia visual e estética dos painéis. Retire-se de maneira cuidadosa agentes biológicos. Dessa forma é importante que sejam realizadas limpezas de fungos, raízes e outros elementos que cobrem as pinturas rupestres, na tentativa de identificar elementos caracterizadores de identidades. Protejam-se os grafismos de exposições a fatores como sol, chuva, vento e outros elementos degradantes. Torne reconhecíveis todos os grafismos que por fatores antropicos, naturais e biológicos encontrem-se irreconhecíveis. É importante frisar ainda a construção de pingadeiras ou coberturas para proteção dos sítios, utilizando material dos próprios arredores.

A construção de passarelas e pontos de informação e orientação para os turistas, juntamente com placas de informações referentes aos sítios arqueológicos e aos elementos animais, minerais e vegetais que compõem o eco-sistema local parece ser uma solução também aplicável na tentativa de preservar esse patrimônio. É fundamental ainda a criação de normas para sistematizar os procedimentos que ajudem a conservar as pinturas rupestres, os sítios arqueológicos e todo o entorno. Sendo ainda relevante a capacitação de pessoal local para atuar junto à identificação, caracterização, conservação e preservação desse patrimônio.

As dificuldades em se preservar esses testemunhos parecem ser grandes, contudo a região conta com pessoas compromissadas com a pesquisa arqueológica seria. Atualmente, um banco de dados de caráter fotográfico juntamente com as fichas de cadastro de sítios vem sendo sistematicamente organizadas na tentativa de salvaguardar a cultura material potencialmente rica da região, bem como estudos exaustivos nesses sítios.

Percebe-se que a noção de pertencimento e apropriação desse legado está ocorrendo (ainda de maneira lenta) por parte de algumas comunidades e alguns moradores. O que por si só demonstra a importância da inserção da comunidade na pesquisa arqueológica da região.

O caminho a se percorrer ainda é bastante longo, mas avalia-se como promissor a relação sítio arqueológico (antigo) e morador (atual). Uma vez que a região busca ascender-se no que tange ao desenvolvimento auto-sustentável. E nesse caso é impossível desvincular o passado dessa nova meta de presente e futuro. Necessita-se ainda de políticas públicas e de investimentos para proteção, conservação, estudo e divulgação desse patrimônio, que afinal de contas pertence a todos, sem distinção de cor, sexo ou classe social. Uma vez como pertenceram no passado.

Aqueles compromissados com essas questões não podem esquecer, do que bem salientou Kestering (2003) sobre a preservação do patrimônio arqueológico da região, quando o mesmo afirma que “quem se propõe a construir um projeto de futuro para a região não pode esquecer e nem anular o passado da mesma”.

Dessa forma é importante termos em mente que não se pode valorizar o que não se conhece, por isso a necessidade de extroversão do conhecimento arqueológico da região.  Nesse sentido entra as ações de educação patrimonial, essenciais para apresentar a população um patrimônio que é seu, mas cujo valor como bem histórico ela desconhece ou na melhor das hipóteses pouco valoriza.

Necessita-se que a noção de preservação e conservação seja de fato estabelecida, para desenvolvermos políticas de manuseio e divulgação desse patrimônio tão rico, e que aos poucos vem sendo estudado e divulgado de maneira cuidadosa. Tendo as comunidades da área a devida atenção, no que se refere a vestígios de um passado não aparentemente distante, mais que foge de nós cada vez mais que tentamos resgatá-lo.


¿Preguntas, comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com


Cómo citar este artículo
:

Lacerda de Lima, Sebastião Filho; Kestering, Celito; de Castro Mendonça, Elizabete y Amâncio-Martinelli, Suely G. Fatores degradantes em sítios de arte rupestre: revisitando o Boqueirão do Riacho das Traíras, no municipio de Sento Sé-Ba
En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/trairasseba.html


2015

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDI, Cesare. Teoria Del Restauro. Edizioni di Storia e Litteratura. Roma, 1963. p. 1-40.

BRUNO, Maria Cristina Oliveira. A Museologia a Serviço da Preservação do Patrimônio Arqueológico. In. Anais. Museu Histórico Nacional. Vol. 38. 2006.

CALDARELLI, Solange Bezerra & BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Arqueologia e Museologia: Experiências de um Trabalho Integrado. In. Anais. Museu Histórico Nacional. Vol. 38. 2006.

CALDERÓN, Valentin; JÁCOME, Yara Dulce Bandeira de Ataíde; SOARES, Ivan Dorea Cancio. Relatório das atividades de campo do Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico. 1977. 75p.

CORREIA, Raquel. Diferentes Leituras dos Grafismos Rupestres de Traíras. Monografia para graduação. Departamento de Ciências Humanas – DCH3.

Universidade do Estado da Bahia – UNEB - Juazeiro – BA. 2008. 48 f.

CASSARES, N. C. Como Fazer Conservação Preventiva em Arquivos e Bibliotecas, Madrid: Ediciones Cátedra, 2000.

GONZÁLEZ-VARAS, I. Conservación de bienes culturales: Teoría, historia, princípios y normas. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000, p. 628.

LUSO, E. LOURENÇO, P. B. ALMEIDA, M. Breve história da teoria da conservação e do restauro. Engenharia Civil, v. 1, n. 20, 2004.

KESTERING, Celito. Registros Rupestres na Área Arqueológica de Sobradinho. UFPE. Recife. (Dissertação de Mestrado). 2001. 225p.

______. Estratégias de conservação das pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Gonçalo, em Sobradinho – BA. CLIO Arqueológica nº. 16. p. 49-66. 2006. 2003.

______. Identidade dos Grupos Pré-históricos de Sobradinho. UFPE. Recife. (Tese de Doutoramento). 2007. 289f.

LIMA FILHO, Sebastião Lacerda de. Temática Dominante nas Pinturas Rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras, no Município de Sento Sé – BA. UNIVASF. São Raimundo Nonato, Piauí. Monografia: 2010. 111 p.

LAGE, Maria Conceição Soares Meneses; CAVALCANTE, L; GONÇALVES, A. A. Intervenção de conservação no sítio Pequeno, Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí – Brasil. In: Revista Fundhamentos, v. 1. n. 6. São Raimundo Nonato (Pi): FMHA/Centro Cultural Sérgio Motta. 2007.

LAGE, Maria Conceição Soares Meneses; BORGES, Jóina Freitas. A Teoria da Conservação e as Intervenções no Sítio do Boqueirão da Pedra Furada – Parque Nacional Serra da Capivara. CLIO Arqueológica nº. 16. p. 32-47. 2006.

LAGE, Maria Conceição Soares Meneses. Análise Química de Pigmentos de Arte Rupestre do Sudeste do Piauí. Revista de Geologia V.09, 1996. p. 83-96. 2005.

PUCCIONI, Sergio; FIGUEREDO, Dorah. Consolidação estrutural da Toca da Entrada do Pajaú: diagnóstico e proposta de intervenção. Teresina: IPHAN. 2006.