Iconografia
Marajoara: Uma abordagem estructural
Denise Pahl Schaan. deniseschaan@marajoara.com Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Coordenadora do Curso de Especialização em Arqueologia. Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Universidade Federal do Pará.
Resumen: Este artículo propone una metodología
estructuralista para el estudio del arte arqueológico, a
partir de un caso específico: La cerámica policroma
de la Fase Marajoara de la Isla Marajó, en la boca del río
Amazonas, Brasil. La autora sustenta que los diseños formados
por la pintura, incisiones y excisiones en la cerámica son
un código visual e iconográfico que hacen parte de
un sistema lingüistico, que puede ser estudiado por métodos
lingüisticos.
Nota
del editor:
Aunque éste
artículo no especifica su contribución al estudio
del arte rupestre de la región, hemos considerado pertinente
su publicación en Rupestreweb
dadas sus potenciales aplicaciones metodológicas para el
estudio iconográfico comparado entre el arte rupestre y los
diversos vestigios arqueológicos de un área determinada.
.......O
reconhecimento da estrutura no objeto (na arte) nos traz emoção
estética.
(Lévi Strauss,
in Chabornnier, 1989:110)
Desde o século passado, boa parte dos pesquisadores que
descreveram a cultura Marajoara aventuraram -se, vez ou outra,
a embrenhar- se no terreno espinhoso dos estudos iconográficos
(Netto, 1885; Torres, 1940; Bardi, 1980; Roosevelt, 1991). A fragilidade
anaítica da maior parte dessa literatura provém menos
de uma visão ingênua da arte arqueológica do
que da falta de embasamento teórico-metodológico adequado,
direcionado especificamente a seu objeto de estudo. Os métodos
de análise formal, extremamente adequados para identificar
estilos a fim de estabelecer comparações e elaborar
tipologias (usados por Palmatary, 1949; Meggers e Evans, 1957),
são totalmente ineficazes no estudo da semântica das
representações. A identificação de formas
mais naturalistas, antropomorfas e zoomorfas, por sua vez, proliferou-se
de forma quase inconseqüente (Roosevelt, 1991), enquanto que
a apreciação dos grafismos geometrizantes não
mereceu a atenção devida. Explorando a bibliografia
existente, não encontramos nenhum trabalho que partisse de
uma amostra consistente de cerâmica Marajoara e que analisasse
os motivos decorativos de forma total e integrada.
|
Area de influência da
cultura Marajora. Fuente: SCHAAN, Denise Pahl en Arte
da terra, resgate da cultura material e iconográfica
do Pará.Belém. Edicao SEBRAO,1999. |
A analogia etnográfica continua sendo usada ampla e indevidamente
para sugerir significados para a arte arqueológica. Felizmente,
talvez por influência do posicionamento de etnólogos
no estudo da arte étnica, nos últimos anos diversos
arqueólogos têm afirmado o caráter puramente
ilustrativo do método comparativo nos estudos iconográficos
(Chollot-Varagnac, 1980; Prous, 1992). Não é contraditório
afirmar, todavia, que o estudo do caráter e do sentido que
assumem as manifestações artísticas nas sociedades
indígenas contemporâneas é extremamente valioso
para a compreensão da arte pré-histórica. As
pesquisas antropológicas têm demonstrado, sem exceço,
que a arte nas sociedades iletradas é um poderoso veículo
de comunicação sobre valores sociais, morais e étnicos,
constituindo-se em um código socialmente aceito e compreendido.
A decoração dos objetos, estando totalmente integrada
à sua finalidade social, veicula a mitologia e cosmologia
do grupo, com o objetivo não só de registrar, mas
de divulgar e perpetuar a cultura (Illius, 1988; Costa, 1987; Costa
e Beltrão, 1974; Dorta, 1987 e 1981; Müller, 1990, 1992;
Ribeiro, 1987, 1992; Seeger, 1987; Lopes da Silva, 1994, Lopes da
Silva e Farias, 1992, Velthem, 1992, 1994; Vidal e Lopes da Silva,
1995). A arte funciona então como um código inerente
à cultura e reside aí a necessidade de estudá-la
a partir de suas propriedades intrínsecas. Sendo assim, os
estudos etnográficos nos fornecem a base teórica que
nos permite estudar o grafismo indígena enquanto um sistema
lingüstico visual que possui organização e coerência.
Partindo do pressuposto de que na origem da arte se encontra uma
preocupação em veicular conceitos cosmológicos
relacionados a um repertório mítico particular, temos
que admitir que a expressão gráfica se apresenta organizada
de forma semelhante ao pensamento que a gerou. Lévi-Strauss
reiteradas vezes demonstrou que a história mtica não
assume uma forma linear, e é apenas aparentemente desprovida
de lógica. A identificação dos mitemas, unidades
significativas e condutoras da narrativa, possibilitou que se compreendesse
o caráter universal e lógico dos mitos. A transmutação
visual do mito, quando acontece, na arte, busca representar essas
estruturas e reforçar a história oral. Ainda que nem
todas as representações, tendo em vista a variedade
dos suportes, tenham um referencial mitológico, uma vez que
podem ser apenas indicativos de genealogias e posições
sociais, não há motivo para se supor que se organizem
de forma diferente, uma vez que veiculam conceitos gerados por um
mesmo processo mental. Nesse contexto, a arte se constitui em um
código visual que revela uma estrutura epistemológica
global.
Nossa preocupação, ao estudar a arte Marajoara foi
a de, inicialmente, eleger uma amostra que deveria ser minuciosamente
analisada e da qual obteríamos a maior quantidade de informações
possível. Não só essa amostra deveria ser analisada
ao vivo, para observar texturas e sutilezas dos desenhos e relevos
- o que de saída descartou as peças fotografadas ou
desenhadas reproduzidas em outras obras - como deveria conter um
número de objetos reduzido, porém suficiente. Todas
essas condições, somadas à proximidade geográfica,
nos levaram á Coleção Tom Wildi, sugerida por
nosso orientador, prof. Dr.Jose Brochado e gentilmente posta à
nossa disposição pela professora Teresa Fossari, então
diretora do Museu Universitário da Universidade Federal de
Santa Catarina. Trabalhamos com 208 utensílios de cerâmica
da Fase Marajoara, entre peças inteiras e fragmentos, provenientes
de coleta superficial e desenterramentos realizados pelo colecionador
em pelo menos seis sítios: Guajará, Laranjeiras, Gentil,
Macacão, Matinada e Pacoval do Arari. Apesar de ser um material
descontextualizado, é bem representativo do elenco de técnicas
e motivos decorativos empregados na arte Marajoara. Como um dos
objetivos de nossa pesquisa era o de demonstrar as potencialidades
do estudo de coleções museolõgicas, e por uma
questão metodológica, em nenhum momento do trabalho
nos reportamos a qualquer outra peça cerâmica que não
fizesse parte da coleção, ainda que isso viesse a
corroborar nossas assertivas. Procuraremos demonstrar aqui, nosso
método de trabalho e os resultados obtidos.
Inicialmente desenhamos os perfis das vasilhas e tomamos nota,
em uma matriz de dados, das características dos objetos segundo
uma lista de atributos exaustiva. As vasilhas e objetos que demonstraram
uma decoração de tamanho significativo foram desenhados
inteiramente, respeitando suas proporções originais.
O processo de análise das representações se
deu em momento posterior, com base nos desenhos, que possibilitaram
uma visão de conjunto. Primeiramente buscamos identificar
na fauna de Marajó, que não seria na atualidade significativamente
distinta da que havia durante a Fase Marajoara (conforme Marcos
di Bernardo, comunicação pessoal, 1996), quais seriam
as espécies animais representadas na cerâmica. Essa
busca revelou-se frutífera. Os zoomorfos representados tem
seu similar real e em grande quantidade, na zona arqueológica.
Uma das representações da serpente pôde ser
definida como sendo a de uma Bothrops marajoensis ou B. atrox, conhecida
popularmente por "jararaca" e que possui uma característica
singular: a cabeça em forma de ponta-de-lança (Hoge,
1966, Avila-Pires, 1990). Num vaso desenhado por Tom Wildi (fig.a)
ela é plenamente reconhecível, e em um fragmento de
prato (fig. b) vemos como ela foi representada de forma estilizada.
|
|
Fig.a. |
Fig.b |
O hachurado interno que aparece nas duas figuras pode ser a representação
do lado ventral da serpente, conforme nos sugeriu o biólogo
Marcos di Bernardo. Quase todas as espécies de serpentes
possuem esse "desenho" formado pela sucesso de escamas, geralmente
de cor clara. Outra representação de serpente que
aparece na coleção, de forma mais naturalista, tem
a cabeça formada por três semi-esferas - o que também
sugere o formato de ponta-de-lança - e o corpo coberto por
signos que se repetem. Constatamos que o movimento que fazem os
corpos das serpentes na urna funerária que apresentamos a
seguir (fig. c), aparece de forma "estilizada" em um fragmento
de tigela (fig.d), cercado por triângulos. Se há
dúvida quanto ao fato das linhas sinuosas representarem as
serpentes, o desenho do vaso seguinte (fig. e) mostra nitidamente
a relação entre a serpente e os triãngulos.
Os dois exemplos acima demonstram o que se constitui a base de
nosso trabalho, que é o de buscar semelhanças estruturais
entre as representações, concebendo a estrutura como
"um modelo construído segundo certas operações
simplificadoras que me permitem uniformar fenômenos diferentes
com base num único ponto de vista" (Umberto Eco, 1976:36).
Se metodologicamente trabalhamos com a noção de
simplificação, que nos remete, nas comparações
entre zoomorfos e grafismos, a um sentido de estilização,
isso não quer dizer que entendamos serem as representações
"naturalistas" anteriores aos grafismos numa linha diacrônica.
Ainda que não seja pelo fato de o material não ser
datado arqueologicamente - o que dificultaria qualquer afirmação
nesse sentido - entendemos que o grafismo pode representar o objeto
real por sua estrutura e não por sua forma, o que depende
exclusivamente de uma convenção entre os "interlocutores"
nessa forma de comunicação visual. Segundo Leroi-Gourhan
(1985), a arte do Paleolítico Superior surgiu representando
graficamente ritmos, idéias e não formas naturalistas,
as quais se desenvolveram posteriormente.
O exemplo acima (fig. d), mostra que há uma representação
icônica das serpentes, uma vez que ela se liga ao seu referente
por traços definidores de sua forma básica, que, nesse
caso, se confunde com sua própria estrutura. A identificação
dessa iconicidade se deu em função de um contexto,
fora do qual a figura seria identificada apenas como "linhas sinuosas
que se entrelaçam". Através de processos semelhantes,
identificamos, então, diversos signos icônicos a partir
da comparação entre representações "naturalistas"
e grafismos. Isso não se deu, é claro, sem uma base
teórica consistente, que creditamos principalmente ao trabalho
de Nancy Munn (1962, 1966, 1973), entre os Walbiri, na Australia.
Essa pesquisadora, cujas idéias têm influenciado diversos
antropólogos que hoje se dedicam ao estudo da arte indígena
no Brasil (Ribeiro, 1987a, 1987b; Langdon, 1992; Müller, 1992;
Vidal e Lopes da Silva, 1992, entre outros), identificou nos desenhos
guruwari, feitos pelos Walbiri em areia e pedra, a existência
de uma linguagem visual icônica amplamente utilizada pela
sociedade e ligada história de seus antepassados míticos.
Seus grafismos, totalmente ininteligíveis para qualquer observador
não-culturalmente inserido, serviam como apoio à narrativa
que, através deles, ganhava força visual. A partir
de um número determinado de signos gráficos icónicos,
assim definidos por sua relaçõo estrutural com seus
referentes, eles construíam desenhos de diferente complexidade
e conteúdo semântico. Como cada signo desses, ou unidade
mínima de significação, podia ter um ou mais
referentes, o que determinava o seu significado era a posição
que ocupava no conjunto e a relaçõo que possuía
com as demais unidades.
Rex González (1974:13), estudando a arte arqueológica
do noroeste argentino, já tinha percebido
"atributos que se recomponem creando nuevas imágenes
cuya recurrencia nos habla a las claras de la existencia de un verdadero
mensaje, en el que los elementos esenciales tendrían - por
analogía - el carácter de verdaderos fonemas de las
frases figuradas, que pueden variar, a menudo, en sus aspectos formales
o estilísticos, pero entre las que se mantienen sus relaciones,
de manera que será posible poder determinar la constancia
o las diferencias de estructura que dan coherencia al todo".
O autor supunha, ainda, que seria possível
descobrir-se uma gramática que regesse as relações
formais que se estabelecem entre esses elementos essenciais. Não
é de nosso conhecimento, entretanto, que tenha sido dada
continuidade a essa pesquisa.
Percorrendo caminhos semelhantes, percebemos a existência,
na arte Marajoara, de estruturas mínimas que poderiam estar
ligadas, não apenas a uma representação zoomorfa
total, mas também à parte dela. Rex González
(op. cit) identifica, no trabalho acima citado, a existência
de figuras naturalistas que se decompõem em elementos essenciais,
como garras e olhos. A representação do escorpião
na urna funerária de tipo Pacoval Inciso, de resto já
reconhecida anteriormente, está estreitamente ligada a qualquer
representação de olhos na arte Marajoara. Isso pode
ser constatado pelo desmembramento que ela sofre em inúmeros
desenhos, onde essa idéia, que tem sua origem na figura do
escorpião, chega ao ponto de ser veiculada apenas por dois
tracinhos paralelos, uma unidade mínima que veicula uma concepção
essencial do referente. Convencionamos chamar essas unidades básicas
de unidades mnimas significantes (como outros autores já
o fizeram - Munn, op. cit; Ribeiro, 1987b; Müller, 1992) -
o que implica reconhecer que elas contêm um significado, ainda
que não o conheçamos. As figuras abaixo mostram a
representação do escorpião assim como aparece
na urna mencionada e permitem compará-la a um escorpião
verdadeiro e mostrar como a mesma foi representada de forma icõnica.
|
Fig.e.Eescorpion O
escorpião na natureza O escorpião na urna A
estrutura identificada As unidades mínimas significantes |
|
Fig.f.Exemplos de localização
das unidades em diversos utensílios da Coleção
Tom Wildi. |
A hipótese de que partes do objeto representado
continuem a conter a mesma força significativa apóia-se
também nas constatações de Regina Polo Müller
(1990, 1992) sobre os motivos decorativos dos Asurini do Xingu,
nos quais foram também identificadas unidades mínimas
de significado. Pelos relatos dos ndios, o boneco Tayngava (imagem
humana) podia ser representado apenas por uma parte de seu corpo
e, seja qual fosse ela, era prontamente reconhecido como Tayngava
pela comunidade. Entendemos que determinados conceitos na arte Marajoara
possam tambem ser representados igualmente por duas unidades ligeiramente
diferentes, o que percebemos pela posicao semelhante que ocupam
nos desenhos, relativamente ao conjunto. Sobre os desenhos dos trançados
Kayabi, Berta Ribeiro (1987b) considera que as variações
de forma que assumem alguns signos podem ser variações
vocabulárias ou semânticas.
A representação do lagarto, ou jacaré,
muito freqüente em grandes vasos excisos, também foi
relacionada a uma unidade mínima significante, um tridente,
que aparece em quase todos os desenhos, muitas vezes ocupando uma
posição central e relacionado cabeça:
|
Fig.g.A representação
naturalista A representação estilizada A estrutura
A unidade |
|
Fig.4.Exemplos de localizaçõo
da unidade em diversos utensilios na Colção
Tom Wildi. |
Enfim, tomando como base os signos gráficos
icônicos identificados a partir da comparação
estrutural com referentes naturalistas, e comparando os diversos
desenhos entre si, isolamos 52 unidades mínimas significantes
no grafismo Marajoara. Em nenhum momento do trabalho atribuimos
significado às unidades. O fato de relacioná-las com
animais apenas possibilitou sua identificação e mostra
sua ligação com um conceito de alguma forma compreendido
a partir desse referente. Como esse estudo restringiu-se à
Coleção Tom Wildi, essas unidades se constituem em
uma hipótese de trabalho, que deverá ser testada num
universo maior, quando certamente sofrerá modificações.
Seguindo uma linha teórico-metodológica
estruturalista e apoiados nos bons resultados obtidos por Munn,
Ribeiro, Velthem e Müller (op. cit.), pretendemos dar continuidade
a essa pesquisa, abarcando uma quantidade bem maior de objetos.
Ao definirmos o grafismo Marajoara como uma linguagem visual icônica
(Schaan, 1996, 1997), não consideramos que esse "código"
seja um tipo de escrita gráfica, uma vez que, por sua disposição
circular e contínua, é dificil acreditar que pudesse
ser "lido" de maneira fonética. Mesmo assim, admitimos que
essa forma de linguagem possui uma gramática gerativa e estrutural
que pode ser estudada e compreendida.
¿Preguntas,
comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com
Cómo
citar este artículo:
SCHAAN,
Denise Pahl. Iconografia Marajoara: Uma abordagem estructural.
En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/schaan.html
2001
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