Cenografía emblematica da tradição São Francisco nas pinas rupestres de Lagoa do Mari, em Sento Sé - Ba

 

Celito Kestering. Licenciado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina-UNISUL (1974), bacharel em Agronomia pela Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco-FAMESF (1980), mestre em História (2001) e doutor em Arqueologia (2007) pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Professor adjunto 2 da Universidade Federal do Vale do São Francisco-UNIVASF. E-mail: kester@terra.com.br

Sebastião Lacerda de Lima Filho. Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade Federal do Vale do São Francisco-UNIVASF; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia e Interfaces Disciplinares na Universidade Federal de Sergipe–UFS.
Email: arqueologiasebast@yahoo.com.br.

Sâmara dos Reis. Estudante no Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco-UNIVASF. E-mail: samaraf3@gmail.com



RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de contribuir para o reconhecimento da identidade dos grupos pré-históricos do Vale do Rio São Francisco, identificando e mapeando painéis de pintura rupestre com cenografia emblemática. Identifica-se padrões cenográficos, na recorrência de composição e distribuição de grafismos nos suportes, nas vertentes e nas feições de relevo. Cenografias emblemáticas são arranjos gráficos nos quais se consegue identificar a temática das unidades componentes, mas não se consegue reconhecer o tema da ação representada pelo conjunto. Em 112 sítios arqueológicos da região de Sobradinho, Kestering (2007) constatou que as pinturas rupestres estavam arranjadas de maneira semelhante às dos sítios pesquisados no planalto central do Brasil e em toda a extensão do Vale do Rio São Francisco. Com base nessa constatação, identificou uma cenografia emblemática que classificou preliminarmente como da hipotética Tradição São Francisco. A presente pesquisa viabilizou a constatação de que, no entorno do Povoado da Lagoa do Mari, no Município de Sento Sé - BA, também existem feições de relevo com painéis de pintura rupestre da hipotética Tradição São Francisco. São painéis de composição com um zoomorfo estático, acompanhado de grafismos reconhecíveis de temática variável. Sugere-se, por isso, o prosseguimento da pesquisa para identificação de cenografias emblemáticas da hipotética Tradição São Francisco em outras feições de relevo do Vale do São Francisco.

Palavras-chave: Pintura rupestre. Hipotética Tradição São Francisco. Lagoa do Mari. Sento Sé - BA. 

 

INTRODUÇÃO

 

A história da humanidade é marcada pelas formas de organização social, aspectos simbólicos, religiosos e ideológicos desenvolvidos pelo homem, assumindo no tempo e espaço, características próprias de cada grupo.

A Arqueologia, por ser a ciência que se dedica ao estudo de aspectos culturais deixados por sociedades pretéritas, busca reconhecer a identidade dos grupos pré-históricos pelos atributos que se conservam nos vestígios arqueológicos. Os registros rupestres representam uma parcela desses vestígios. Eles são parte de um sistema de comunicação social que resistiu a ação deletéria do tempo.

Atualmente as pinturas e as gravuras estão sendo analisadas a partir de estudos sistemáticos. Considerando que cada grupo possui um sistema de comunicação próprio e distinto, é possível identificar os grupos pré-históricos que as realizaram, por meio do reconhecimento de seu perfil gráfico. Entende-se como perfil gráfico o conjunto de características que permitem atribuir um universo de grafismos a uma autoria social. Essas características constituem padrões de representação gráfica que correspondem a certas características culturais (PESSIS, 1992).

Para se reconhecer um perfil gráfico, é necessário que se identifiquem padrões de reconhecimento e de cenografia, a temática dominante e a técnica. O padrão de reconhecimento corresponde à dominância de grafismos conhecíveis ou reconhecíveis. Grafismos conhecíveis são aqueles que o pesquisador pode identificar como unidade gráfica, no momento em que o descobre, relacionando-o com algo que faz parte do seu mundo conhecido. Eles são facilmente identificados porque representam componentes essenciais de elementos do mundo sensível. Para a identificação de grafismos reconhecíveis, que não representam realidades conhecidas, considera-se unidade gráfica um signo ou todo o conjunto de signos e espaços vazios de um painel, enquanto não são identificadas figuras semelhantes em outros painéis. Eles são, por isso, reconhecíveis nas recorrências. Cenografia é a maneira como as figuras estão agenciadas em diferentes unidades para representar temáticas ou composições (PESSIS, 1992). Pelo critério da temática, identificam-se as preferências de formas que os autores de uma determinada sociedade utilizam para representar realidades (PESSIS, 1992). Temática é o germe a partir do qual pode-se desenvolver diferentes composições para representar realidades. As realidades representadas podem pertencer ao mundo imaginário ou material. Não se pode interpretá-las, porque não se dispõe do código de interpretação dos autores. Seu reconhecimento é possível na peculiaridade das formas. Identifica-se a sua ocorrência ou recorrência, assim como se pode, sem conhecimento de teoria musical, reconhecer diferentes formas e agenciamentos das notas que definem as temáticas musicais. As temáticas dos grafismos conhecíveis caracterizam-se pela representação de expressões corporais ou atributos de identidade, como ornamentação, forma e tamanho. Nos grafismos reconhecíveis, caracterizam-se pela presença de elementos básicos da geometria descritiva e seu agenciamento nas unidades gráficas (KESTERING, 2007). A técnica refere-se aos aspectos relativos à realização das pinturas que constituem o suporte, a matéria-prima, os instrumentos e os procedimentos de realização (PESSIS, 1992). Essa identificação torna possível o reconhecimento de elementos caracterizadores da identidade dos grupos pré-históricos.

Na fase inicial das pesquisas, quando não se tinha cronologias e nem contexto arqueológico desvendado, definiam-se tradições rupestres a partir dos tipos de grafismos e do local onde eram localizados. As tradições representavam uma classe inicial geral. O conceito de tradição correspondia, então, ao conceito de horizonte cultural. Horizonte cultural em Arqueologia corresponde ao conjunto de atributos culturais de um grupo humano relacionado com o espaço geográfico (SILVA, 2008).

Foi assim que, segundo Prous (1992), “no estado da Bahia, até o momento, foi possível identificar a presença de cinco tradições rupestres: Agreste, São Francisco, Geométrica, Planalto e Nordeste”.

Na presente pesquisa pretende-se saber a que tradição pertencem os painéis gráficos encontrados em rochas das feições de relevo do entorno do povoado Lagoa do Mari, no município de Sento Sé – BA.

Em muitos suportes de rochas situados nas vertentes do vale do Rio São Francisco há painéis de pintura e de gravura rupestre expostos à degradação física, química e biológica. Perdem-se, assim, muitas informações básicas que poderiam contribuir para a construção do conhecimento científico a respeito da pré-história regional. Para evitar a perda total de informações que são indispensáveis para a construção do contexto arqueológico da área, faz-se necessário o desenvolvimento de pesquisas na região. É por isso que se estabelece como objetivo geral dessa pesquisa a análise de um dos atributos de identidade dos grupos pré-históricos que ocuparam o médio São Francisco. Busca-se alcançá-lo por meio do reconhecimento de um perfil gráfico preliminar dos painéis identificados. Do objetivo geral derivam-se dois objetivos específicos, a saber: estudar e tornar conhecido o patrimônio arqueológico da região do Médio e do Submédio São Francisco e identificar um padrão cenográfico nas feições de relevo do entorno do povoado de Lagoa do Mari.

A metodologia aplicada para a análise da dimensão cenográfica dos painéis fundamenta-se nas pesquisas de Anne-Marie Pessis (1992) e Kestering (2007). Os elementos que caracterizam esta dimensão foram escolhidos nas cenografias recorrentes com zoomorfos acompanhados de grafismos reconhecíveis.

Em relação à metodologia de coleta de dados, optou-se pela utilização de fichas de levantamento para contextualização ambiental, além do registro fotográfico do suporte e dos painéis com recorrência cenográfica.

 

2. ÁREA DE PESQUISA

A área desta pesquisa situa-se no entorno do povoado de Lagoa do Mari, Sento Sé - BA, dentro da Área Arqueológica de Sobradinho, na margem direita do Médio São Francisco (Fig. 1). É uma parte da Chapada Diamantina que apresenta relevos elevados e bastante acidentados com planaltos, serras quebradas e montanhas. A Chapada Diamantina estende-se das proximidades da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais até o extremo Norte do Estado da Bahia (Fig. 2).

Entende- se como área arqueológica, uma categoria de entrada para referenciar a pesquisa em relação a limites geográficos flexíveis dentro de uma unidade ecológica e que participe das mesmas características geo-ambientais. Assim o estudo dentro de uma área arqueológica visa conhecer os processos de ocupação, adaptação e aproveitamento dos recursos disponíveis por grupos que habitaram a região em tempos pretéritos (MARTIN, 2005).

As feições de relevo trabalhadas nesta pesquisa foram identificadas durante a execução do projeto Caracterização e Diagnóstico do Patrimônio Arqueológico do Médio São Francisco. O referido projeto, financiado pelo CNPq, faz parte da Sub-rede Caracterização e Diagnóstico do Patrimônio Arqueológico e Paleontológico do Médio e Submédio São Francisco. Ambos, a sub-rede e o projeto são componentes do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Devido à grande extensão da área de abrangência do projeto, inviabilizou-se a realização de prospecções para a identificação e cadastramento de cada sitio arqueológico, sendo inventariadas apenas as feições de relevo com vestígios arqueológicos.

No entorno da Lagoa do Mari, visitou-se 13 feições de relevo modeladas por processos erosivos em rochas metassedimentares da Chapada Diamantina, Formação Caboclo e Formação Morro do Chapéu com painéis de pintura rupestre (Fig. 3 e 4).

Figura 1. Localização da Lagoa do Mari no Município de Sento Sé - BA .

Os painéis encontrados foram pintados principalmente em abrigos e paredões pouco protegidos contra agentes intempéricos como chuva, vento e sol. Todos os painéis encontram-se relativamente próximo a fontes de água como cacimba, caldeirões e olhos d’água.

Segundo Etchevarne (2007), “os setores dos componentes rochosos escolhidos e transformados em suportes de grafismos, são na sua maioria lisos, planos ou pouco ondulados”. As rochas oferecem condições físicas particulares que devem ter sido consideradas na escolha dos locais para a realização das pinturas.

A cobertura vegetal é formada por caatinga hiper-xerófila arbustiva e arbórea, distribuída em solos abertos. É frequente a ocorrência de cactos como xiquexique (cephaloceureus gounelli), facheiro (cephaloceureus piauihiensis) e mandacaru (cereus jamacuru), aglomerações rasteiras de macambira e coroa de frade e de espécies da Mata Atlântica, com presença de canela (Nectandra sp.), pau d’óleo (Caesalpiniaceae sp.), amescla-de-cheiro (Protium heptaphyllum) e imbaúba (Cecropia sp.).

Encontrou-se painéis com uma figura zoomorfa acompanhada de grafismos reconhecidos em seis das 13 feições de relevo visitadas. Eles apresentam composição e distribuição de figuras semelhantes aos painéis que Kestering (2007) identificou na sua unidade de pesquisa e caracterizou como cenografias emblemáticas da hipotética Tradição São Francisco. Decidiu-se, por isso, fazer sobre eles uma análise da dimensão cenográfica a partir das temáticas identificadas nos painéis. Na dimensão cenográfica observou-se as variáveis da composição, do movimento, da quantidade e da morfologia dos grafismos.

Para fundamentar a análise e inseri-la no contexto das pesquisas que vêm sendo realizadas na região Nordeste do Brasil, fez-se uma síntese evolutiva do quadro teórico construído ao longo dos anos. Ela serve para justificar a utilização dos parâmetros que dão relativa consistência às proposições referentes à cenografia emblemática da hipotética Tradição São Francisco.  

Figura 2. Hidrografia e relevo da Chapada Diamantina na região da Lagoa do Mari
(Fonte: acervo pessoal de Adolfo Okuyama).

Figura 3. Geologia da área de estudo (Fonte: acervo pessoal de Adolfo Okuyama).

Figura 4 – Boqueirão dos Prazeres, uma das feições de relevo visitadas.

 


3. REGISTROS RUPESTRES

Registros rupestres são inscrições que podem apresentar-se na forma de pinturas ou de gravuras. Elas foram realizadas sobre uma superfície rochosa por grupos pretéritos. Podem revelar importantes informações acerca da identidade dos grupos que deixaram estes fragmentos de seu sistema de comunicação pré-histórico.

As representações rupestres, enquanto linguagens de sociedades extintas, não podem ser interpretadas, uma vez que a percepção do meio em que foram feitas, há milhares de anos, era totalmente diferente da nossa. Entretanto, estas manifestações constituem um dos vestígios que foram deixados pelas sociedades pré-históricas que aqui viveram. Elas fazem parte do que se dispõe para compreender a sua passagem pelos lugares que ocuparam (SANTAELLA, 1983).

Inicialmente, estes grafismos eram compreendidos como simples representações artísticas ou mágicas, carregadas de espiritualidade. Em um período posterior, quando Leroi-Gourhan e Annette Laming-Emperaire começaram a propor metodologias sistemáticas para seu estudo, passaram a ser reconsideradas como uma linguagem simbólica. Assim, essas manifestações começaram a ser estudadas a partir da sua organização nos painéis. Fundamentados em pressupostos estruturalistas, esses pesquisadores propunham que a composição dos painéis e a distribuição das figuras nos suportes eram a materialização de um código socialmente construído pelos grupos pré-históricos. Para eles, apesar de não ser possível desvendar a mensagem dessas manifestações, elas são resquícios da pré-história que podem ser estudados na tentativa de identificar atributos culturais das populações autoras. Pesquisar as pinturas rupestres como códigos materializados do sistema de comunicação de sociedades extintas pode contribuir para o reconhecimento de identidades de grupos pré-históricos que ocuparam uma determinada região.

As representações rupestres são compostas por características que variam de acordo com a região onde estão localizadas ou mesmo de acordo com o período de sua elaboração. Dessa forma, há a necessidade de segregar essas manifestações em classes representativas denominadas convencionalmente “tradições”. Este termo, segundo Silva (2000), foi introduzido na Arqueologia brasileira pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas – PRONAPA, na década de 1960.

O primeiro trabalho a ter por base os objetivos do PRONAPA para classificações em Arqueologia foi o de Valentin Calderón (1971) que definiu tradição como:

O conjunto de características que se refletem em diferentes sítios ou regiões, associadas de maneira similar, atribuindo cada uma delas ao complexo cultural de grupos étnicos diferentes que as transmitiam e difundiam, gradualmente modificadas, através do tempo e do espaço.

No Estado da Bahia, região Norte da Chapada Diamantina, Calderón (1971) identificou dois conjuntos distintos de pinturas rupestres que classificou como Tradição Realista e Tradição Simbolista. Segundo Calderón (1983:30), a Tradição Realista “se caracteriza pelos esforços realizados em todas as suas fases para reproduzir figuras antropomorfas ou zoomorfas com a maior fidelidade, permitindo identificar, facilmente, as ações que estão realizando”.

Ainda segundo Calderón (1983: 15-16), a Tradição Simbolista é a mais abundante e espalhada por todo o País. Geométrica ou grosseiramente figurativa, deve corresponder a povos marginais, com cultura muito primitiva. Encontramo-la na Caverna do Bode, na Serra Solta, no Rio São Francisco (Curaçá e Petrolina) e em diversos pontos da Chapada, especialmente nos sopés desta, perto da estrada que vai de Irecê a Morro do Chapéu. São sempre motivos isolados sem correlação aparente. Superpõem-se e misturam-se sem conservar nenhuma harmonia, variando bastante quanto à forma. Podem ser simples círculos ou espirais, assim como complicados desenhos lineares altamente elaborados como os que se podem ver na Serra Solta.

Pessis (1992), definiu tradição como o ordenamento de registros gráficos que teriam sido produzidos por grupos que compartilhavam de uma mesma identidade cultural. Para definir um conjunto de pinturas como sendo de uma determinada tradição, Guidon (1979) considerou:


Os tipos de figuras, as proporções relativas que existem entre os diferentes tipos e as relações que se estabelecem entre grafismos que compõem um painel. A formulação dos tipos é o resultado de uma síntese de vários parâmetros escolhidos entre as características oferecidas pelo conjunto de todas as manifestações gráficas existentes na área arqueológica.

Considerando estes aspectos, Guidon (1979) classificou as pinturas da região Nordeste em Tradição Nordeste, Agreste, e Geométrica. Segundo Pessis (1992), essa classificação era preliminar e visava identificar as especificidades do meio cultural dos grupos pré-históricos. Ter-se-ia que obter cronologias, desvendar o contexto arqueológico e aprofundar a caracterização da temática, da técnica e das formas de apresentação gráfica para que outras classificações pudessem ser feitas com o objetivo de reconhecer a identidade de seus autores.

 

3.1  Tradição Nordeste

 
A Tradição Nordeste foi identificada na Área Arqueológica de São Raimundo Nonato, no Sudeste do Piauí, na década de 1970. Nos últimos 40 anos de pesquisa descobriu-se mais de quatrocentos abrigos pintados. Obteve-se para ela uma datação relativa de 12.000 BP, tornando-se a Tradição mais antiga do Nordeste brasileiro. Segundo Pessis (2003),

A tradição Nordeste está presente em toda a região Nordeste do Brasil, mas todos os indícios arqueológicos indicam que sua origem se encontraria na região do Parque Nacional Serra da Capivara, onde foi descoberta, até agora, a maior densidade de pinturas dessa tradição. São pinturas realizadas por grupos humanos que se estabeleceram nesse território e permaneceram nele durante, ao menos, seis mil anos. Entre 12.000 e 6.000 anos, está comprovada, na região, a presença da Tradição Nordeste.

Até o momento, as evidências apontam o Sudeste do Piauí como o centro dessa tradição. Todavia, mais três áreas de expansão podem ser admitidas: a Chapada Diamantina e a área de Central, na depressão do Rio São Francisco, no estado da Bahia, e a região do Seridó, no estado de Rio Grande do Norte, de onde posteriormente se expandiu em direção ao estado da Paraíba (MARTIN, 1997).

As pinturas da Tradição Nordeste apresentam-se compostas por figuras conhecíveis, sendo freqüentes as figuras humanas, de animais e, em uma freqüência menor, as representações de plantas. São pequenas, medindo entre cinco e quinze centímetros. Apresentam cenas dinâmicas, com movimento e com uma grande variedade de temas dentre os quais a luta, a caça, a dança e o sexo. A cor predominante é a vermelha, aparecendo em várias tonalidades. É comum também a cor branca, a amarela, a preta e a cinza.

 

3.2Tradição agreste

 
Quando se fez a classificação preliminar, supunha-se que os primeiros grafismos da Tradição Agreste teriam surgido na região Agreste do Estado de Pernambuco e da Paraíba. São registros rupestres em dimensões maiores que a Tradição Nordeste, com técnica gráfica e riqueza temática inferior aos da Tradição Nordeste. Na maioria das vezes representam seres estáticos ou com pouco movimento. Os antropomorfos apresentam-se isolados ou acompanhados de grafismos reconhecíveis. Segundo Pessis (1992)

A Tradição Agreste, [é] caracterizada pela presença de figuras humanas de forma muito típica, raras figuras de animais e um número importante de grafismos puros. São também muito raras as composições representando ações, e as figuras sempre são representadas estáticas. Em alguns casos pode-se ter a impressão de se ver uma representação de uma caçada, mas o único indício visível é a proximidade pictural entre uma figura humana e um animal, não aparecendo gestos ou armas que permitam uma afirmação segura do tipo de ação desenvolvida. [...] a maior concentração de sítios acha-se na região do Agreste do Estado de Pernambuco. Sua existência tem sido até agora datada em 9.000 a. C., tendo uma dispersão muito grande em todo o Nordeste do país.

Tem-se observado que, em diversos sítios arqueológicos do Agreste pernambucano predomina a representação de círculos, quadrados, retângulos, espirais, linhas sinuosas, ziguezagues, tridáctilos e desenhos geométricos. Jamais se saberá o que poderiam significar visto que o mundo sensível e simbólico dos grupos pré-históricos é muito recuado no tempo em relação aos paradigmas da atual civilização ocidental.

3.3 Tradição geométrica

É caracterizada por uma nítida predominância de grafismos reconhecíveis. Os grafismos de composição são pouco numerosos. Ocupam as paredes dos abrigos. Podem aparecer sozinhos ou junto a painéis de outras tradições. Costumam ter cor vermelha, mas é comum a policromia. Além dos geométricos, aparecem, de maneira pouco freqüente, lagartos e aves (SCHMITZ 1984 e GUIDON,1989).

Segundo Beltrão (2003), as representações de grafismos geométricos podem ter sido obtidas através da ingestão de plantas alucinógenas, que são práticas comuns em rituais e cerimônias dos índios contemporâneos. O que mais impressiona é que representações semelhantes são encontradas em sítios arqueológicos de todo o planeta. Obviamente não se pode aceitar a hipótese de que havia um universo simbólico comum a todos os povos pré-históricos dispersos geograficamente, visto que uma representação de um círculo pode não ter o mesmo sentido para várias etnias de tempos e realidades diferentes. Segundo Martin (2005),

Nos painéis de todas as tradições e subtradições rupestres até agora registradas no Brasil, existem grafismos puros, descritos como ‘abstratos’, ‘simbólicos’, ‘esquemáticos’ e também ‘geométricos’. A definição do geométrico é aplicada quando o grafismo lembra alguma das formas geométricas conhecidas... Nota-se um certo cacoete na inclinação cômoda de atribuir-se a uma suposta tradição Geométrica todos os grafismos puros que não se encaixam nas outras tradições definidas.    

3.4  Tradição São Francisco

Prous (1992) considera a Tradição São Francisco consolidada porque seu padrão técnico e cenográfico é encontrado em toda extensão do Vale do Rio São Francisco, nos estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe bem como nos estados de Goiás e Mato Grosso. Afirma que:

Os raros zoomorfos são quase que exclusivamente peixes, pássaros, cobras, sáurios e talvez tartarugas. Notável é a ausência dos cervídeos; não existe nenhuma cena, mesmo de tipo ‘implícito’, mas existem, por vezes, trocadilhos entre biomorfos e sinais (na região de Montalvânia). (...) A região norte mineira é caracterizada por representação de pés humanos, armas (lanças, propulsores), instrumentos (cestas, tipiti, panela, maracás? etc.) sem que haja cenas mostrando sua utilização (..) Perto de Januária, a temática é muito mais variada. (...) Perto das nascentes do Rio São Francisco (...) a porcentagem de animais aumenta, mantendo a bicromia mais característica da tradição do vale, com a figura chapada amarela, e um contorno vermelho. No norte mineiro, o preto e o branco foram também utilizados. (...) Os autores destas obras demonstram frequentemente um sentido de ‘efeito’ nos jogos de cores vivas e na organização interna das figuras geométricas mais complexas (...) que torna os sítios extraordinariamente espetaculares.

Prous (1992) e Gaspar (2003) referem-se ao conjunto de pinturas rupestres do Vale do Rio São Francisco afirmando que nele “os motivos geométricos predominam, sendo possível identificar também desenhos que apresentam formas humanas e animais.

 

3.5  Tradição astronómica

 

Beltrão (1986) desenvolveu trabalhos de prospecções arqueológicas ao longo do Rio São Francisco, estado da Bahia. Seus estudos relacionados a registros rupestres associavam um conjunto de grafismos (cometas, lua, sol e estrelas) a eventos celestes. Classificou-os como Tradição Astronômica.

 

3.6 Ambiguidades coneituais das tradições preliminares

O conjunto de pinturas rupestres classificadas preliminarmente por Calderón, como Tradição Simbolista, contém elementos que atualmente podem ser atribuídos a outras tradições, como a São Francisco, a Astronômica, a Geométrica ou a Agreste.  Apesar de alguns autores considerarem a Tradição São Francisco consolidada, esta, não é consenso entre os arqueólogos brasileiros. Existem muitas controvérsias quanto a sua existência, composição e legitimidade. Segundo Martin (2005), “tal problema se deve à ambigüidade das definições e à escolha do que pode ser considerado geométrico”. Martin ainda fala da facilidade em considerar geométrico. Pondera que geométrico propriamente dito significa ter uma certa quantidade de ângulos. Para Martin, são geométricos os triângulos, os quadrados e os retângulos. Ainda segundo a autora, as representações arredondadas costumam caracterizar-se como “Tradição Astronômica”.

Face ao exposto, deduz-se que todas as tradições, exceto a Nordeste, são hipotéticas enquanto não tiverem contexto arqueológico desvendado em amplo espaço e com datações que comprovem longa cronologia. Além disso, são evidentes as ambigüidades nas classificações de pintura rupestre. Deve-se isso ao fato de que as classificações preliminares foram feitas sem referências espaciais e/ou cronológicas.

 

 

3.7 Novos parametros para definicação de tradições

 

Analisando conjuntos de registros gráficos, pode-se identificar preferências cenográficas e o padrão de reconhecimento que os autores de uma determinada sociedade utilizam para representar realidades (PESSIS, 1992).

Em relação às pinturas rupestres, os atributos de identidade podem ser segregados nos padrões de reconhecimento, cenografia, temática e técnica. Segundo Pessis (1992), “a opção pela realização de grafismos com padrões de reconhecimento e de cenografia é cultural”. Eles são transmitidos de geração em geração, durante milênios. Grandes conjuntos gráficos segregados a partir da identificação de padrões de reconhecimento e de cenografia são, por isso, classificados em tradições.

Do ordenamento preliminar para as pinturas rupestres, a Tradição Nordeste foi a mais pesquisada. Nela as figuras são de caráter narrativo, com mais informações que os grafismos reconhecíveis. Além disso, ela concentra-se dominantemente no Parque Nacional Serra da Capivara onde se tem contexto arqueológico desvendado, com datações relativas obtidas em três décadas de escavação.

A identificação do padrão de reconhecimento e da cenografia é fundamental para a filiação de determinados conjuntos de grafismos a uma Tradição. Das quatro tradições descritas, três apresentam grafismos com técnica e temática semelhantes. Desta forma, a identificação da cenografia recorrente na região de Lagoa do Mari pode contribuir para corroborar a Tradição São Francisco.

A semelhança do padrão cenográfico de uma extensa área ocupada por grupos pré-históricos que, provavelmente, realizaram pinturas rupestres durante milênios, viabiliza a filiação hipotética do conjunto gráfico da unidade de pesquisa a uma tradição (PESSIS, 1992).

 

Identifica-se padrões cenográficos, na recorrência de composição e distribuição de grafismos nos suportes, nas vertentes e nas feições de relevo. Na área de pesquisa, as pinturas rupestres estão isoladas ou distribuídas em painéis de composição com várias unidades, em diferentes espaços e alturas dos suportes.

 

4. METODOLOGIA

Iniciou-se a pesquisa com estudo bibliográfico sobre atributos que permitem o reconhecimento da identidade de grupos pré-históricos. Fez-se, em seguida, estudo sobre a importância do padrão de reconhecimento e da cenografia para o reconhecimento de identidades. Em seguida, realizou-se uma pesquisa imagética, tendo como base as pesquisas anteriores realizadas no Vale do Rio São Francisco.

Para complementar a pesquisa, realizou-se uma série de atividades de campo destinadas a levantar painéis de pintura rupestre. Fez-se o registro das imagens com câmaras fotográficas digitais. A distribuição geográfica das feições de relevo foi definida com GPS GARMIN Etrex. Em laboratório, fez a distribuição espacial das feições de relevo com imagens feitas no Programa Arquigiz. Por fim, segregou-se as fotos de painéis com cenografias emblemáticas. Fez-se a identificação da cenografia emblemática da hipotética Tradição São Francisco com parâmetros utilizados por Kestering (2007) quando a identificou em sítios da região de Sobradinho. Vale lembrar que Beltrão também identificou um padrão cenográfico semelhante, com zoomorfos estáticos associados a grafismos reconhecíveis, na área de Central.

Como metodologia de análise, fez-se a segregação dos painéis, utilizando-se ferramentas do adobe Photoshop. Realizou-se a análise da dimensão cenográfica a partir das temáticas identificadas nos painéis. Na dimensão cenográfica observou-se as variáveis: movimento, composição, quantidade de grafismos e morfologia.

 

5. ANÁLISE CENOGRÁFICA

A análise permitiu constatar que cinco das seis feições de relevo em que se identificou conjuntos de pinturas representando um zoomorfo acompanhado de grafismos reconhecíveis tinham painéis da cenografia emblemática. São elas: os boqueirões do Batedor, do Jatobá, do Cícero Macambira, da Descoberta e o Serrote dos Caboclos (Fig. 5 e 6). Observou-se a representação de um zoomorfo acompanhado de até quatro grafismos reconhecíveis. Aferiu-se o movimento na representação de posturas na relação dos membros superiores e/ou inferiores do zoomorfo com o corpo. Não se identificou cenas com grande movimento. Constatou-se que, na maior parte das representações, os zoomorfos são estáticos ou com pouco movimento, com ângulos de aproximadamente 90° na junção dos membros com o tronco.

Analisados esses elementos que compõem a cenografia, aferiu-se a altura dos painéis dos painéis no suporte, constatou-se que variam de zero a oito metros acima da superfície atual do terreno. Aferiu-se também elementos técnicos como o tamanho e a cor. O tamanho dos zoomorfos varia entre 10 cm e 30 cm e a cor predominante é a vermelha.

Figura 5. Cenografia emblemática confirmada no Boqueirão do Cícero Macambira.
Figura 6. Cenografia emblemática confirmada no Serrote dos caboclos.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho priorizou-se a análise das pinturas de forma a atender a necessidade do entendimento dos grupos que viveram na região. Constatou-se a recorrência de painéis de cenografia emblemática que, com base nos aportes teóricos, considera-se como sendo da hipotética Tradição São Francisco. Os tipos de pigmento utilizados são predominantemente vermelhos, nas diversas tonalidades que o óxido de ferro e o ocre natural podem fornecer. A intensidade das tintas usadas nas cenas emblemáticas varia, com traços fortes e intermediários.

Pôde-se observar que algumas cenografias analisadas nesse trabalho correspondem ao padrão da cenografia realizado também na região de Central – BA. Isso aumenta a probabilidade de estar presente em todo o vale do Rio São Francisco, fortalecendo a hipótese de ser realmente emblemática da hipotética Tradição São Francisco. Ressalta-se a semelhança morfológica de um zoomorfo de Central - BA com o zoomorfo do painel do Serrote dos Caboclos (Fig. 7), e de outro, com o zoomorfo do Boqueirão do Cícero Macambira (Fig. 8).

As atividades realizadas mostraram as atuais condições do patrimônio arqueológico do Vale do São Francisco. Em sua maioria, encontra-se preservado devido ao difícil acesso às feições de relevo com vestígios arqueológicos. Faz-se necessário, entretanto, o desenvolvimento de uma política de preservação com a conscientização das populações locais para preservar esse patrimônio cultural.

Assim como balanço final, conclui-se que este trabalho juntou elementos que servem de referência para futuras pesquisas. Sugere-se o seu prosseguimento para identificação de cenografias emblemáticas da hipotética Tradição São Francisco em outras feições de relevo do município de Sento Sé e da região.

Figura 7 - Cenografia emblemática da hipotética Tradição São Francisco em Central – BA
Figura 8 – Cenografia emblemática da hipotética Tradição São Francisco em Central - BA


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Kestering, Celito; de Lima Filho, Sebastião Lacerda y dos Reis, Sâmara. Cenografía emblematica da tradição São Francisco nas pinturas rupestres de Lagoa do Mari, em sento sé-ba. En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/lagoamari.html


2015

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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