Sociedades metafóricas no submédio São Francisco: as pinturas rupestres da tradição São Francisco no Serrote da Gamelerinha, em Sento Sé, Bahia, Brasil

Morgana Cavalcante Ribeiro. Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade Federal do Vale do São Francisco–UNIVASF.  Pós-graduanda em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira pela Universidade do Norte do Paraná–UNOPAR. ribeiromorgana24@yahoo.com.br

Sebastião Lacerda de Lima Filho. Doutorando em Arqueologia (PROARQ/UFS) e Mestre em Arqueologia e Interfaces Disciplinares pela Universidade Federal de Sergip–UFS. Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade Federal do Vale do São Francisco–UNIVASF. Professor Colaborador no Departamento de Arqueologia–DARQ/UFS. Membro do Grupo de Pesquisa Arqueologia da Paisagem, Identidade e Diáspora Africana-CNPq/DARQ/PROARQ–UFS & Member /Researcher–Association for Environmental Archaeology/Institute of Archaeology, University of London–United Kingdom.
arqueologiasebast@yahoo.com.br



RESUMO

O Serrote da Gameleirinha está situado no Povoado de Piçarrão, no município de Sento Sé, norte do Estado da Bahia. Trata-se de uma feição de relevo que compreende onze sítios arqueológicos de ocupações pré-coloniais e históricas. Dentre o material arqueológico identificado em superfície há artefatos líticos (lascados e polidos), cerâmicas, metais, vidros, louças, restos de edificações e pinturas rupestres, cujo presente estudo irá detalhar. Os grafismos estão presentes em três sítios arqueológicos e distribuídos em quinze painéis sob suportes de metagranitoporfirítico. A análise e classificação dessas pinturas, a partir do parâmetro da cognoscibilidade, permitiu classificá-las como pertencentes à Tradição São Francisco, e a partir do parâmetro da temática, como pertencente a uma subtradição díspar da Subtradição Sobradinho, aqui designada de subtradição incógnita. A ocorrência de uma nova subtradição na Área Arqueológica de Sobradinho sugere outros elementos inerentes à identidade dos grupos indígenas que habitaram o Sub-Médio São Francisco no período pré-colonial.

Palavras-chave: Pintura Rupestre. Serrote da Gameleirinha. Cognoscibilidade. Temática.


ABSTRACT

Saw the Gameleirinha is located in The Town of Piçarrão in the municipality of SentoSé, north of Bahia. It is a prominent feature comprising eleven archaeological sites of pre-colonial and historic occupations. Among the archaeological material identified on surface there lithic artifacts (chipped and polished), ceramics, metal, glass, crockery, remains of buildings and rock paintings, which this study will detail. The graphics are present in three archaeological sites and distributed in fifteen panels under metagranito porphyritic brackets. The analysis and classification of paintings from the knowledgeability parameter allowed classifies them as belonging to the tradition San Francisco, and from the theme of the parameter, as belonging to a disparate subtradição of SubtradiçãoSobradinho, here designated subtradição unknown. The occurrence of a new subtradição the Archaeological Area of Sobradinho suggests other elements related to the identity of indigenous groups who inhabited the Lower-middle São Francisco in the pre-colonial period.

Keywords: Rock Painting. Saw the Gameleirinha. Knowledgeability. Theme.

 

1.     INTRODUÇÃO

Nos estudos de grafismos rupestres, torna-se imprescindível delimitar as categorias de classificação. Nesse tipo de estudo utiliza-se a ordenação de categorias crono-estilísticas denominadas de tradições. Estas por sua vez subdividem-se em subtradições e estilos.

A noção de tradição foi introduzida na arqueologia americana, segundo Costa (2012), por volta de 1940 em estudos realizados por Gordon Willey no Peru. Tradição em Arqueologia possui um significado distinto da Antropologia e da História. Assim, o conceito de tradição arqueológica pode se definido como uma das variáveis de um corpo metodológico com a função de explicar os contextos arqueológicos, observando as formas da cultura material inseridas num espaço específico e com sequências temporais associadas às regiões (COSTA, 2012, p. 9).

Em terras brasileiras foi Valentín Calderón o primeiro a utilizar tradições enquanto macro categoria de classificação para as pinturas rupestres em território baiano. Esse arqueólogo adaptou o conceito de tradição, até então usado nas classificações de artefatos cerâmicos, para as pinturas. Eis a definição de tradição para Calderón:

“(...) o conjunto de características que se reflete em diferentes sítios ou regiões, associadas de maneira similar, atribuindo cada uma dela ao complexo cultural de grupos étnicos diferentes que as transmitiram e difundiram, gradualmente modificadas, através do tempo e do espaço.” (CALDERÓN,1983, p.13)

Segundo Costa (2012, p.12), as tradições rupestres definidas por Calderón na Bahia tiveram influência nas classificações de grafismos rupestres nas décadas de 1970 e 1980. Foi nesse período em que foram definidas as tradições Meridional, Litorânea catarinense, Geométrica, Planalto, Nordeste, Agreste, Itaquatiara, Amazônica e São Francisco. É nessa última tradição citada que as pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha estão incluídas. Para Prous (1992), a Tradição São Francisco é uma tradição onde os grafismos abstratos (geométricos) sobrepujam amplamente em quantidade os zoomorfos e antropomorfos, perfazendo entre 80 e 100% das sinalizações (PROUS, 1992, p.525).

Uma vez classificados os grafismos rupestres em uma tradição, deve-se filia-los a outra categoria, a subtradição entendida como diferenças nas apresentações gráficas de um mesmo tema numa tradição, mas associada à distribuição geográfica desta diferença. Uma subtradição seria o aprimoramento da definição de uma tradição, quando começam a ser notadas distinções com expressão regional na sua acomodação interna (COSTA, 2012).

Fazer ciência é classificar. Mediante a necessidade imprescindível de classificar o objeto de pesquisa para reconhecer atributos de identidade, filiou-se o conjunto de pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha como pertencentes à Tradição São Francisco e a uma subtradição desconhecida, aqui designada de subtradição incógnita.

A Tradição São Francisco foi definida por André Prous nos seus trabalhos executados no Alto e Médio São Francisco, precisamente no Vale do Rio Peruaçu, em Minas Gerais. Essa tradição ocorre ao longo do vale do Rio São Francisco, nos estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, além disso, é representada também nos estados de Goiás e Mato Grosso. Essa tradição rupestre é composta majoritariamente de grafismos abstratos ou metafóricos. A aparição de zoomorfos é rara e quando ocorre, são representações de peixes, répteis e pássaros. A bicromia é intensa nos grafismos representados e aparece quase que na totalidade das pinturas da Tradição São Francisco. Os autores desses grafismos demonstravam frequentemente um sentido de “efeito” nos jogos de cores vivas e na organização interna das figuras geométricas mais complexas (PROUS, 1992, p. 527).

Para compreender e classificar conjuntos de figuras rupestres pré-históricas utiliza-se o parâmetro da cognoscibilidade. Entende-se como cognoscibilidade a qualidade do que é cognoscível. A cognoscibilidade depende da relação dialógica entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Existem objetos que, por sua natureza (essência ou estrutura) e por seus atributos (aparência) são facilmente identificados. Outros dependem do conjunto de conhecimentos, da capacidade de percepção ou do grau de aprimoramento técnico do sujeito cognoscente.

Todo o conhecimento envolve a relação direta do sujeito cognoscente com algum objeto (a relação de conhecer diretamente ou, conversamente, de apresentação de um objeto a um sujeito cognoscente), mesmo que esse conhecimento seja por descrição de outro objeto (RUSSELL, 1964).

Pelo parâmetro da cognoscibilidade dominante, relacionada com longo tempo e amplo espaço, classificam-se conjuntos de pinturas em tradições. Identifica-se a cognoscibilidade dominante pela segregação qualitativa e quantitativa de figuras conhecíveis e reconhecíveis. São conhecíveis as figuras que representam realidades do mundo conhecido pelo pesquisador. Para a identificação de grafismos reconhecíveis, que não representam realidades conhecidas pelo pesquisador, considera-se unidade gráfica um signo ou todo o conjunto de signos e espaços vazios de um painel, enquanto não são identificadas ocorrências de figuras semelhantes em outros painéis. Eles são reconhecíveis, por isso, nas recorrências.

Temática é o germe (unidade gráfica) a partir do qual se podem desenvolver diferentes composições a partir de figuras conhecíveis e/ou reconhecíveis. Seu reconhecimento é possível na peculiaridade das formas. As temáticas das figuras conhecíveis caracterizam-se pela representação de expressões corporais e/ou atributos de identidade, como antropomorfos (ornamentação, braços erguidos ou fletidos, tamanho, etc.), zoomorfos (mamíferos como veados, capivaras, felinos, etc.), lagartos, quelônios, aves (com asas fechadas ou abertas), anatômicos (braços, mãos, pés, etc.), peixes, plantas. Nas figuras reconhecíveis, caracterizam-se pela presença de sinais recorrentes nas unidades gráficas. Pelo critério da temática dominante, relacionada com um espaço geográfico restrito, filiam-se conjuntos de figuras rupestres em subtradições.

Objetivou-se com essa pesquisa, levantar painéis de pintura rupestre no Serrote da Gameleirinha, para identificar o padrão de cognoscibilidade e a temática dominante, contribuindo, assim, para o reconhecimento da identidade dos grupos pré-históricos do Vale do São Francisco. Identificam-se padrões de cognoscibilidade pela constatação da dominância de pinturas conhecíveis ou reconhecíveis. Pelo critério da temática, identificam-se as preferências nas formas que os autores de uma determinada sociedade utilizam para representar realidades. A identificação do padrão de cognoscibilidade e da temática dominante no conjunto gráfico de uma feição de relevo contribui para a identificação de subtradições. Com a identificação de subtradições pode-se identificar o território com as fronteiras geográficas de ocupação pré-histórica. Caracteriza-se uma subtradição pelo reconhecimento da temática dominante em um ambiente geográfico definido. É bastante provável que um ambiente geográfico de ocupação pré-histórica abrange um território cuja área inclui várias feições de relevo.

De acordo com Martin (1998), “para a fixação de uma subtradição precisa-se, [por isso] do levantamento cuidadoso de uma área com concentração de sítios e estudos de grafismos caracterizadores da mesma, além da determinação, em cada caso, dos tipos de suportes preferidos pelos autores das pinturas”.

O reconhecimento da temática dominante de uma feição de relevo, acrescido ao de outras feições de relevo (objeto de outras pesquisas), comporá o conjunto de peças que permitirão o reconhecimento do território ocupado por um grupo social específico, no período da pré-história.

Os dados divulgados neste arquivo são oriundos do projeto de pesquisa Cognoscibilidade e temática dominantes no Serrote da Gameleirinha, no Município de Sento Sé – BA (Projeto CNPQ nº 800120/2013-2) desenvolvido no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica/PIBIC ∕ CNPQ por Morgana Cavalcante Ribeiro, do ano de 2013 a 2014, sob a orientação do Dr. Celito Kestering.

A pesquisa foi iniciada com estudo bibliográfico sobre identidade e atributos que permitem o reconhecimento de grupos pré-históricos. Continuou-se com estudo bibliográfico sobre tradição e subtradição e sua importância como atributo para reconhecimento da identidade de grupos pré-históricos.

Em seguida, fez-se uma pesquisa imagética sobre o tema, com base nas pesquisas anteriores realizadas no Vale do Rio São Francisco. A pesquisa imagética contemplou, prioritariamente, o banco de dados do Projeto Caracterização e Diagnóstico do Patrimônio Arqueológico do Médio São Francisco realizado por professores e estudantes do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, no período de 2008 a 2011.

Complementou-se a pesquisa com atividades de campo, no mês de outubro de 2013, quando se desenvolveu uma prospecção arqueológica no Serrote da Gameleirinha e em suas adjacências para identificação de sítios arqueológicos com painéis de pinturas rupestres. Foram levantados painéis de pintura rupestre no Serrote da Gameleirinha, próximo ao povoado de Piçarrão, no Município de Sento Sé – BA, onde a grande incidência de intemperismo físico (exposição dos painéis ao sol e à chuva) está comprometendo a preservação daquele patrimônio cultural pré-histórico. Na oportunidade, fez-se o levantamento do contexto ambiental, geológico e geomorfológico, além do levantamento fotográfico de todos os aspectos relevantes.

As imagens das pinturas e do contexto ambiental, geológico e geomorfológico foram levantadas com câmeras fotográficas digitais e a localização geográfica dos sítios arqueológicos do Serrote da Gameleirinha foi definida com a utilização de GPS. Para facilitar a visualização e uma melhor análise das pinturas, realizou-se a vetorização das imagens das pinturas no software GIMPPortable. Em laboratório, fez-se a o reconhecimento da temática dominante e a localização geográfica do Serrote da Gameleirinha, com imagens obtidas no Google Earth.

 

2. O SERROTE DA GAMELEIRINHA

2.1.  Localização

O Serrote da Gameleirinhaestá localizado na Fazenda São Romão, na localidade de Piçarrão, de Sento Sé – BA, região Norte do Estado da Bahia, Submédio São Francisco. Em prospecções preliminares delimitou-se a área onde foram identificados painéis de pintura rupestre (Quadro 01; Fig. 01).

No.

Zona

UTML

UTMN

Altitude

Local

01

24

262136

8911044

557 m

Lado noroeste

02

24

262697

8911034

582 m

Lado nordeste

03

24

262854

8910444

562 m

Lado leste

04

24

262857

8908910

587 m

Lado sudeste

05

24

261981

8910031

600 m

Lado oeste

Quadro 01 – Coordenadas dos vértices do perímetro do Serrote da Gameleirinha

Figura 01 – Imagem satélite da feição de relevo. Fonte: Google Earth, 2015.


      

2.2 Contexto geológico

O objetivo primordial de uma prospecção arqueológica é compreender como os povos pretéritos relacionaram-se com o espaço e a paisagem (BICHO, 2006). No estudo da área do Serrote da Gameleirinha, mediante uma prospecção arqueológica, procurou-se desvendar parte do contexto em que as pinturas rupestres foram feitas.

Com o levantamento do contexto ambiental buscou-se identificar elementos da paisagem com a qual se relacionaram os grupos pré-coloniais que ocuparam o Submédio São Francisco. Fez-se uma breve caracterização da área, nos aspectos geológicos, geomorfológicos e ambientais, como pré-requisitos para o estudo das pinturas rupestres que existem no Serrote da Gameleirinha.

O estudo do ambiente ou do contexto é fundamental para a Arqueologia. Contexto é uma trama espacial e temporal que influencia a cultura. Ele promove caracteres específicos nos artefatos e no conjunto de achados arqueológicos (BUTZER, 1984, p. 4). O ambiente influencia na definição das temáticas das pinturas rupestres. Como parte do sistema de comunicação, elas sofreram mudanças, em função da modificação dos conhecimentos gerados pelo sistema cognitivo dos autores, diante das modificações da paisagem com que se relacionavam.

O ambiente influenciou, também, diretamente nas técnicas de realização que os grupos pré-coloniais utilizaram para representar as temáticas das pinturas rupestres. É por isso que o estudo do contexto geológico, geomorfológico e ambiental das feições de relevo onde elas foram realizadas faculta o reconhecimento de atributos da identidade de seus autores. O reconhecimento de atributos da identidade dos autores valida, por sua vez, a identificação do território que eles ocuparam.

Os dados ambientais sugerem os espaços que grupos pretéritos podiam ocupar para viver e realizar rituais próprios de sua cultura. É por isso que os arqueólogos empenham-se, sempre mais, em compreender o contexto do passado para identificar atributos culturais resultantes da relação dos grupos com o ambiente (BAHN E RENFREW, 1998, p. 241). Há que se considerar, porém, que o meio ambiente é dinâmico. Mesmo assim, é importante que o pesquisador o tenha como referência quando analisa artefatos e vestígios arqueológicos porque ele preserva elementos de períodos pretéritos.

As rochas que compõem o Serrote da Gameleirinha pertencem ao grupo geológico Metagranitóides de Regime Transcorrente da Tectogênese Transamazônica (Fig. 02). As rochas Metagranitóides pertencem ao conjunto de rochas metaplutônicas muito antigas de origem ígnea, magmática ou eruptiva. A Tectogênese Transamazônica ocorreu no Proterozóico Inferior, quando as primeiras formas de vida unicelular avançada e multicelular começavam a aparecer no planeta há, aproximadamente, dois bilhões de anos.

Figura 02 – Mapa da geologia do Serrote da Gameleirinha. Fonte: Angelim (1997), modificado pelos autores.

Os metagranitóides do serrote são constituídos de metagranitosporfiríticos (γ4). Eles jazem em contatos difusos com rochas do Complexo Ortognáissico Bandado (51) (ANGELIM, 1997, p. 46), formado no Arqueano inferior, há, aproximadamente, quatro bilhões de anos (SUGUIO, 1998, p. 62).

2.3.   Sítios arqueológicos

Identificaram-se onze sítios arqueológicos na feição de relevo, denominados de Gameleirinha 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, registrados com códigos 030 (como referência para os sítios da Área Arqueológica de Sobradinho) e o respectivo número do sítio (por exemplo, 030.1). Dos onze sítios arqueológicos identificados, apenas três possuem pinturas rupestres. São eles Gameleirinha 1, 2 e 3.

2.3.1. Gameleirinha1

O sítio arqueológico Gameleirinha1 constitui-se como um matacão (Fig.03) detentor de quarenta e seis pinturas rupestres distribuídas em onze painéis. Apenas duas pinturas rupestres são conhecíveis e as demais são reconhecíveis. Nesse sítio evidenciaram-se ainda artefatos líticos (Fig. 04) e fragmentos de cerâmica (Fig. 05).

Figura 03 – Vista geral do sítio Gameleirinha1. Foto: Celito Kestering, 2013.

Figura 04 – Artefato lítico lascado. Foto: CelitoKestering, 2013.
Figura 05 – Fragmento cerâmico. Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.2. Gameleirinha2

O sítio arqueológico Gameleirinha2(Fig.06) também é constituído de um matacão de metagranito porfirítico. Possui apenas uma figura reconhecível pintada na cor laranja, representada em um painel.

Figura 06 – Vista geral do sítio Gameleirinha 2. Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.3. Gameleirinha3

O sítio arqueológico Gameleirinha3 (Fig. 07), também um matacão de metagranitoporfirítico, possui três pinturas rupestres distribuídas em três painéis. Todas as figuras são reconhecíveis.

Figura 07 – Vista geral do sítio Gameleirinha3. Foto: Celito Kestering, 2013.


2.3.4. Gameleirinha4

O sítio arqueológico Gameleirinha4 é um afloramento do maciço rochoso onde pode-se constatar a existência de uma oficina de tritura, pois havia um pilão em rocha (Fig.08) e um artefato lítico triturador (Fig. 09).

Figuras 08 e 09 – Pilão esculpido em rocha e artefato lítico triturador. Fotos: Celito Kestering, 2013.

2.3.5. Gameleirinha5

O sítio arqueológico Gameleirinha5 é uma cobertura sedimentar cenozoica onde havia restos de uma residência com vestígios de fogão, torno armador de rede, dobradiça, guarnição de porta, batente de entrada, fragmentos de vidro, flandres, base para pote de cerâmica, panela de esmalte, pilão esculpido em rocha e artefato lítico (Fig. 10).

Figura 10 – Pilão esculpido em rocha e artefato lítico triturador . Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.6. Gameleirinha 6

O sítio arqueológico Gameleirinha6 também é um afloramento do maciço rochoso, com evidências de oficina de tritura por conter pilões em rocha e artefatos líticos (Fig. 11).

Figura 11 – Artefatos líticos lascados Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.7.     Gameleirinha 7

O sítio arqueológico Gameleirinha7 possui restos de uma casa de farinha, nele foram encontrados forno, prensa, cocho, depósito, vidro, bacias de esmalte, fragmentos de louça e cerâmica (Fig. 12), artefatos líticos, flandres e tembetá (Fig. 13).

Figura 12 – Fragmentos de louça e cerâmicos. Foto: Celito Kestering, 2013.

Figura 13 – Tembetá. Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.8.     Gameleirinha 8

O sítio arqueológico Gameleirinha8 é outro afloramento rochoso que possui pilões em rocha (Fig. 14) e artefatos líticos.

Figura 14 – Pilões esculpidos em rocha. Foto: CelitoKestering, 2013.

2.3.9.     Gameleirinha9

O sítio arqueológico Gameleirinha9 é detentor de restos de uma residência, onde há fragmentos de vidro e cerâmica (Fig.15), ferro, pedra de amolar e artefatos líticos.

Figura 15 – Fragmentos cerâmicos. Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.10.  Gameleirinha 10

O sítio arqueológico Gameleirinha 10 também contém restos de uma residência com a presença de artefatos líticos, fragmentos de louça (Fig. 16) e vidro.

Figura 16 – Fragmento de louça do tipo whiteware. Foto: Celito Kestering, 2013.

2.3.11.  Gameleirinha 11

O sítio arqueológico Gameleirinha 11 também possui restos de uma antiga residência contendo fragmentos de vidro (Fig.17).

Figura 17 – Fragmento vítreo de fabricação industrial. Foto: Celito Kestering, 2013.


3.
CLASSIFICAÇÃO DAS PINTURAS

3.1.  Análise pelo parâmetro da Cognoscibilidade

Entende-se como cognoscibilidade a qualidade do que é cognoscível. A cognoscibilidade depende da relação dialógica entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Existem objetos que, por sua natureza (essência ou estrutura) e por seus atributos (aparência) são facilmente identificados. Outros dependem do conjunto de conhecimentos, da capacidade de percepção ou do grau de aprimoramento técnico do sujeito cognoscente.

Todo o conhecimento envolve a relação direta do sujeito cognoscente com algum objeto (a relação de conhecer diretamente ou, conversamente, de apresentação de um objeto a um sujeito cognoscente), mesmo que esse conhecimento seja por descrição de outro objeto (RUSSELL, 1966).

A natureza (essência) dos artefatos humanos preserva-se na sua estrutura. Esta se configura na constituição (composição) e distribuição de seus componentes. Essas estruturas atendem a imperativos funcionais relacionados com a sobrevivência de grupos. É por isso que, pelo parâmetro da cognoscibilidade é possível constatar se universos de registros rupestres pré-coloniais são predominantemente metonímicos ou metafóricos. Denominam-se as figuras metonímicas como conhecíveis e as metafóricas como reconhecíveis. Figuras conhecíveis representam elementos do mundo sensível sendo, portanto, facilmente identificados. Por não representarem conceitos conhecidos pelo pesquisador, as figuras reconhecíveis são reconhecidas nas recorrências.

3.2.  Análise pelo parâmetro da Temática

Temática é o germe a partir do qual se podem desenvolver diferentes composições para representar realidades pertencentes ao mundo material ou imaginário. Seu reconhecimento é possível na peculiaridade das formas. As temáticas das figuras conhecíveis caracterizam-se pela representação de expressões corporais ou atributos de identidade, como ornamentação, forma e tamanho. Nas figuras reconhecíveis, caracterizam-se pela presença de elementosbásicos (signos e significantes, geométricos ou não) e seu agenciamento nas unidades gráficas.

Pelo critério da temática dominante, relacionada com um espaço geográfico restrito, filiam-se conjuntos de figuras rupestres em subtradições. A temática refere-se a preferências nas formas que os autores de uma sociedade utilizavam para pintar diferentes arranjos que compõem os painéis.

3.3.  Classificação para reconhecimento dos autores

Os artefatos têm diferentes graus de significação para a sobrevivência dos grupos. Alguns, de significância maior, são, por isso, mais recorrentes que outros. Agrande quantidade de registros rupestres que se conservaram em abrigos e escarpas da região Nordeste do Brasil, atesta sua alta significância para os grupos pré-coloniais. As pinturas e as gravuras são fragmentos do sistema de comunicação que tinham função mnemônica5. Eram marcadores significativos de memória para os grupos.

Os registros rupestres são produtos factuais de indivíduos que compartilhavam mapas cognitivos6 e habilidades técnicas dos grupos a que pertenciam. Por possuírem atributos qualitativos perceptíveis, elas são divisáveis, quantificáveis e, por isso, passíveis de estudos científicos.

Fazer ciência é ampliar a compreensão de um universo factual a partir de um modelo teórico bem fundamentado. Para ordenar, explicar ou interpretar objetos factuais, quais sejam as pinturas rupestres, todo pesquisador adota um modelo teórico, constituído de um sistema de conceitos. Da definição precisa dos conceitos, da argumentação e da adoção de parâmetros compatíveis dependem as classificações, as explicações e as interpretações. A consistência científica ou cientificidade das proposições depende, assim, fundamentalmente, da definição precisa das fronteiras dos conceitos.

3.4.  Pressupostos estruturalistas: sociedades quentes e frias versus metonímia e metáfora

Quando se estudam grafismos rupestres como fonte de dados antropológicos para reconhecimento de identidades pré-coloniais, buscam-se reconhecer padrões gráficos que, por serem estruturais, se perpetuam ao longo de milênios. Os padrões gráficos transmitidos de geração em geração são constituídos de características que permitem, por isso, atribuir um universo de grafismos a grupos coloniais e/ou pré-coloniais ligados a uma ancestralidade comum.

Com base nos pressupostos teóricos binários do estruturalismo europeu, Lévi-Strauss (1908 – 2009), diferenciava as sociedades humanas em duas classes. Propunha que há sociedades que produzem seus conhecimentos e artefatos culturais a partir de uma estrutura cognitiva edificada sobre um arquétipo mitológico. Há outras sociedades, afirmava ele, que geram seus conhecimentos e artefatos culturais a partir de uma estrutura cognitiva edificada sobre um arquétipo histórico. Diferenciam-se, assim, as sociedades humanas como “sociedades frias" e "sociedades quentes".

As sociedades frias (primitivas) situam-se fora da história. Elas orientam-se preferencialmente pelo modo mítico de pensar. A partir da concepção do mito suprimem a dimensão do tempo. Orientam-se, dominantemente, pela dimensão do espaço. As sociedades quentes (civilizadas) movem-se dentro da história. Dão ênfase ao progresso e às transformações. Orientam-se, dominantemente, pela dimensão do tempo (LÉVI-STRAUSS, 1962).

Hernando (2002) caracteriza as sociedades frias como portadoras de sistemas de comunicação predominantemente metonímicas e as sociedades quentes como metafóricas. Segundo ela, as sociedades que adotam preferencialmente o espaço como referência são metonímicas. Metonímia é uma figura de linguagem que, dada a relação de semelhança ou a possibilidade de associação, emprega um termo por outro. Metáfora é a palavra ou expressão que produz sentidos figurados por meio de comparações implícitas. Constrói-se a partir de equivalência de termos que subentendem um conceito sem relação aparente com eles. Assim, enquanto no sistema metonímico se estabelece uma relação direta do termo com o objeto a que se refere (garfo e comida, figura da onça conhecida pelo autor do registro rupestre e pelo pesquisador), no sistema metafórico (mulher e gata, figura pectiniforme ou bastonetes paralelos) não se revela o significado do conceito de sensualidade e das formas representadas, respectivamente.

Na tentativa de reconhecer a ancestralidade dos grupos pré-coloniais e coloniais que realizaram as pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha adotam-se os pressupostos teóricos estruturalistas de Lévi-Strauss (1962) e o parâmetro da cognoscibilidade. Deduz-se que, nos rituais de realização de registros rupestres, os grupos metonímicos representavam realidades conhecidas pelos autores e pelos leitores que a elas tivessem acesso enquanto que as realidades representadas pelos grupos metafóricos pressupunham o conhecimento de conceitos subjacentes, acessíveis apenas a quem partilhasse de sua cultura. O universo de pinturas rupestres da região Nordeste pode ser, assim, classificado como figuras dominantemente conhecíveis (realistas), realizadas por grupos metonímicos (sociedades frias) ou dominantemente reconhecíveis (abstratas), realizadas por grupos metafóricos (sociedades quentes) (Figs. 18 e 19).

Figura 18 – Painel 01 do sítio Gameleirinha1 com grafismos metafóricos. Foto: Celito Kestering, 2013.

Figura 19 – Painel 01 do sítio Gameleirinha2 com grafismos metafóricos. Foto: Celito Kestering, 2013.


3.5.
Resultados

Enfatizou-se nesse trabalho a análise das pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha com base nos parâmetros da cognoscibilidade e temática. Entende-se como cognoscibilidade a qualidade daquilo que é cognoscível, ou seja, daquilo que se pode conhecer. A cognoscibilidade depende da relação dialógica entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Existem objetos que, por sua natureza (essência ou estrutura) e por seus atributos (aparência) são facilmente identificados. Outros dependem do conjunto de conhecimentos, da capacidade de percepção ou do grau de aprimoramento técnico do sujeito cognoscente. Assim, com base no estudo do padrão de cognoscibilidade, num universo de 50 figuras, observou-se que duas são conhecíveis (4%) e quarenta e oito reconhecíveis (96%).

No estudo da temática, as temáticas das figuras conhecíveis caracterizam-se pela representação de expressões corporais ou atributos de identidade, como ornamentação, forma e tamanho. As figuras reconhecíveis caracterizam-se pela presença de elementos básicos (signos e significantes, geométricos ou não) e seu agenciamento nas unidades gráficas. O estudo da temática nas pinturas rupestres do Serrote da Gamelerinha resultou na identificação de 35 temáticas recorrentes (Fig. 20), 8 temáticas não recorrentes e 7 pinturas não foram  identificadas por conta da acentuada deterioração.  Nessa pesquisa com base nos trabalhos de Kestering (2007), Lima Filho (2013) e Ribeiro (2014), foram identificadas duas temáticas que eram não recorrentes e passaram a ser recorrentes, a RT-79 e a RT-80 (Figs. 21 e 22). A RT-79 era NR-58 na pesquisa de Ribeiro (2014), e a RT-80 era NR-42 na pesquisa de Lima Filho (2013). Outra modificação ocorreu na RT-72 (Fig. 23), identificada por Lima Filho (2013) que era NR-36 na pesquisa de Kestering (2007). O quadro 02sintetiza as mudanças na numeração das temáticas dessa área arqueológica ocorridas mediante essa pesquisa.

Figura 20– Temáticas recorrentes no Serrote da Gameleirinha

Figura 21 – Temática Recorrente RT -79.
Fonte: Ribeiro (2014, pág. 54). 

Gameleirinha 01 painel 3 (vetorizado)
Fonte: Ribeiro (2014, pág. 54). 

Figura 22 – Temática Recorrente RT -80.
Fonte: Lima Filho (2013, p.125)
Gameleirinha 01 painel 9 (vetorizado)
Fonte: Lima Filho (2013, p.125) 
Figura 23 – Temática Recorrente RT - 72. Fonte: arial (2007, p.108 = NR - 36)
Lima Filho (2013, p.122 = RT-72)  Gameleirinha 01 painel 2 (vetorizado)

Kestering, 2007

Lima Filho, 2013

Ribeiro, 2014

Pesquisa Atual

NR-36

RT-72

Não identificada

RT-72

Não identificada

Não identificada

262697

RT-79

Não identificada

24

Não identificada RT-80

Quadro 02 – Temáticas modificadas.



4.     DISCUSSÃO

Ao término da classificação das pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha, pode-se concluir que elas pertencem à Tradição São Francisco, pois segundo Etchevarne (2007), as formas mais comuns na Tradição São Francisco são bastonetes, grades, redes, ou então, figuras elaboradas, retangulares ou quadrangulares, com contornos bem definidos e interiores divididos em faixas e campos, com preenchimento de linhas retas paralelas ou em ziguezague (ETCHEVARNE, 2007, p. 32).

Afunilando a classificação das pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha, pode-se filia-las àuma subtradição incógnita. Essa subtradição ainda não foi formalmente definida, uma vez que a área de ocorrência de grafismos com a temática dominante que caracteriza essa subtradição ainda não foi pesquisada em sua totalidade. Sua ocorrência é ao sul do Povoado de Piçarrão, no município de Sento Sé – Bahia, sob os suportes do grupo geológico definido como metagranitóides. Os metagranitóides possuem uma composição mineralógica diferente das rochas que suportam os grafismos característicos da Subtradição Sobradinho. A Subtradição Sobradinho ocorre sob suportes de rochas metassedimentares da Formação Tombador, Chapada Diamantina. Segundo Kestering (2007), as figuras da temática dominante dessa Subtradição apresentam traços contínuos, em diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou da esquerda para a direita e vice-versa, quando verticais. Até onde as pesquisas aconteceram na região dos metagranitóides, a temática dominante da subtradição incógnita representam bastonetes paralelos e bastonetes paralelos interceptados por traços horizontais. Assim, a identificação de dominâncias temáticas diferentes, relacionada com suportes de estrutura e composição geológica díspares sugere a ocorrência de uma subtradição que não a de Sobradinho.

Com a classificação das pinturas rupestres e o estudo da temática, pode-se perceber que a dominância temática da RT-16 (bastonetes) reforça a ideia de que as pinturas rupestres do Serrote da Gameleirinha pertencem de fato à Tradição São Francisco e à subtradição incógnita. Esses grafismos foram realizados por grupos que Hernando (2002) caracterizaria como metafóricos e Lévi-Strauss (1962) como sociedades quentes, uma vez que são grupos que realizam seus artefatos culturais a partir de uma estrutura cognitiva edificada sob um arquétipo histórico e orientada por uma dimensão temporal.

 

5.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo limitou-se a uma única feição de relevo onde as rochas são constituídas de metagranitóides e detentoras de pinturas de temática dominante diferente da Subtradição Sobradinho. A identificação de uma dominância temática diferente, relacionada com suportes de estrutura e composição geológica diferentes sugere a ocorrência de uma subtradição que não a de Sobradinho, então denominada de subtradição incógnita. Contudo, a definição de uma subtradição enquanto classificação de registros rupestres é uma tarefa incumbida a trabalhos acadêmicos de nível mais avançado, tal como uma dissertação ou tese. Conforme a sugestão de Ribeiro (2014) deve-se ampliar as pesquisas ao sul do Povoado de Piçarrão, principalmente nas áreas de ocorrência de rochas de metagranitóides e nas adjacências do Serrote do Morrinho e do Serrote da Gameleirinha.

A pesquisa contribuiu de forma significativa, servindo de base para a ampliação das informações acerca da ocorrência de pinturas rupestres diferentes da Subtradição Sobradinho no município de Sento Sé – Bahia, sendo ainda utilizada como referência para a continuidade das investigações dos grafismos dessa nova subtradição. Reconhece-se a necessidade de uma definição formal e acadêmica para essa Subtradição mediante a execução de uma pesquisa de mestrado ou doutorado, assim como há precisão em perpetuar as pesquisas nessa região.

 

 

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Cómo citar este artículo
:

Cavalcante Ribeiro, Morgana; de Lima Filho, Sebastião Lacerda
Sociedades metafóricas no submédio São Francisco: as pinturas rupestres da
tradição São Francisco no Serrote da Gamelerinha, em Sento Sé, Bahia, Brasil

En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/gameleirinha.html

2016

 

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