Brasil


Considerações sobre a arte rupestre no Estado da Bahia, Brasil.

Guilherme Albagli de Almeida –DLA/UESC guilhermealbagli@hotmail.com
Luiz Henrique Farias
Imprensa Universitária luizhfarias@hotmail.com

Pareceristas:
Prof. Durval Pereira da França Filho, Profa Sandra Regina Mendes

Revisão Vernácula:
Profa. Dra. Gessilene Silveira

Estagiárias:
Dayse Rodrigues, Miura Almeida, Carol Gresik, Vanessa Damasceno


RESUMO

Grande parte do Estado da Bahia se insere na bacia hidrográfica do São Francisco e na Cordilheira do Espinhaço, onde passaram e viveram grupos humanos vinculados culturalmente com grupos andinos como se evidencia nas suas línguas, costumes, artefatos e arte rupestre. Neste artigo tentaremos identificar algumas expressões rupestres locais, situando-as no contexto mais amplo das tradições da Arte Rupestre brasileira, quando defrontaremos com evidencias que sugerem cronologias e funções diferenciadas incluindo memoriais de mitos, rituais ou simples anotações de teor prático. O presente texto é fruto da tradução e atualização revisada da sua versão original inglesa, apresentada no Congresso da Associação Internacional de Arte Rupestre, IRAC, realizada em 1999 na Universidade de Ripon,Wisconsin, EUA.

APRESENTAÇÃO 

A geomorfologia sul-americana é dominada pela cordilheira Andina, no Oeste, o platô das Guianas e a planície Amazônica, ao Norte e o Escudo Brasileiro no Leste/Sudeste. Na banda Leste do escudo Brasileiro (Planalto Central), paralelamente à costa marinha, eleva-se a cordilheira do Espinhaço, origem de rios que descem ao mar e ao cráton sãofranciscano, onde flui o maior rio com curso inteiramente brasileiro. Este rio nasce em Minas Gerais, dirigindo-se ao Nordeste, onde deságua, deixando atrás uma bacia de 600 mil km2 fronteiriça às bacias amazônica e platina. Estas bacias possuem algumas nascentes originadas na cordilheira dos Andes.
 
A cordilheira do Espinhaço formou-se no Proterozóico, após a elevação de arenitos de uma antiga costa marinha. A bacia sedimentar do rio São Francisco, por outro lado, resultou de um afundamento da crosta terrestre, motivado pelas mesmas pressões que elevaram o Espinhaço e pela subseqüente sedimentação de um mar quente e raso que invadiu esta depressão no Paleozóico. Esta sedimentação recobriu as formações calcárias erodidas no Devoniano: o cinza “Salitre”, na Bahia e o achocolatado ”Bambuí”, em Minas Gerais. Depois de liberadas da lama ocre rica em nódulos de hematita que os recobria, estes “karsts” foram usados pelos homens da pré-história local para produzirem a sua variada arte rupestre.

Nas terras altas, prevalece o clima AW de Koppen (quente e úmido), onde crescem árvores de [grande] porte. Nas terras baixas, encontra-se o clima Bsw (quente e seco, na mesma classificação), com uma estação chuvosa entre novembro e março e um clima seco o resto do ano. Nestas terras baixas prevalecem as caatingas -“mata clara, rala”, em Tupi - que perde toda a sua folhagem na estação seca, mantendo seus caules e raízes vivos até as próximas chuvas, quando tudo verdeja, liberando fortíssimos aromas perfumosos que atraem [miríades de] insetos que fecundam as suas flores. Apesar da aparente aridez da caatinga, esta esconde diversos espécimes vegetais e animais úteis à alimentação humana.

De acordo com Ab’Saber, emérito geógrafo da USP (1989), o clima local atingiu as atuais feições por volta de 11000 AP, substituindo outro clima mais ameno, onde abundante vegetação fornecia alimento para espécimes da megafauna. Hoje extinta, esta população incluía paleocavalos, paleolamas, tigres de dentes sabre e preguiças gigantes, cujos fósseis são abundantemente encontrados em grutas e caldeirões locais. Alguns estudiosos atribuem esta alta concentração de ossos, nestas cavidades, a fenômenos de tanatocenose, espécie de suicídio coletivo de animais inadaptados a novas condições ambentais, como ainda hoje ocorre com certas espécies de baleias. A. Bryan e A.Cartelle, escavando na área, encontraram ossos fósseis da megafauna apresentando possíveis marcas de antropização por artefatos líticos. M.C.M.C. Beltrão e H. de Lumley, por outro lado, numa gruta baiana, identificaram um artefato lítico com marcas de uso, associado a ossos de megafauna datada de 300 000 AP. Por terem vivido, na área, por milênios, os tatus gigantes que também cavavam túneis, é possível que tal artefato seja de uma datação mais recente, tendo deslizado para níveis estratigráficos inferiores, o que poderia ter perturbando a sua interpretação.

TRADIÇÕES RUPESTRES NO BRASIL

Devido à imensidão do território brasileiro, pelo menos seis grandes tradições de arte rupestre foram ali determinadas:
 
1)A mais sulina foi reconhecida por M. Ribeiro (1979) que chamou-a de Meridional - aparentemente uma extensão de tradições pampeanas, incluindo petroglifos lineares simples, círculos, ângulos e triângulos;
 
2) Num conjunto de ilhas no litoral catarinense, o padre Rohr (1969) reconheceu uma tradição costeira com petroglifos triangulares e séries de pontos paralelos;
 
3) Pouco mais ao norte, de São Paulo ao Nordeste, estão presentes sítios da Tradição Geométrica, incluindo temas das duas tradições anteriormente mencionadas, além dos “lagartiformes” – um tema de distribuição transcontinental e presente em quase toda a bacia do Pacífico, da Costa Oriental Africana ao Sudoeste Asiático, Oceania e costa americana. A representação do lagarto do painel gravado no Sitio Fracarolli, perto de Itapeva, São Paulo, apresenta a mesma cabeça pontuda, triangular, dos lagartiformes do Cerro Colorado, Norte do Chile;

4) Em quarto lugar encontraremos uma longa mancha SE/NE de gravuras picoteadas que, de acordo com N. Guidon (1991), comportam um fácies ocidental e outro oriental. Estes painéis apresentam maior sinuosidade linear e detalhamento compositivo que as três tradições anteriormente mencionadas. Todavia, as três compartilham diversas semelhanças temáticas e formais, podendo, facilmente, serem reunidas numa única macro-tradição sobreposta à área de ocupação dos grupos Macrogê no território brasileiro;


 
5) Tradição Planalto foi a denominação dada por PROUS, da UFMG, para signos [encontrados] em mais de 100 painéis presentes em São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Nesta tradição são numorosos os zoomorfos pintados com vermelho de hematita apresentando corpos chapados, pontilhados ou estriados. Aí, também, aparecem duplas antropomórficas tendo nos braços outra figura, menor, aparentemente humana, como se fosse a entrega de um bebê. Um trângulo aparece sempre junto destas três figuras. Outra recorrência nesta área é a série de antropomorfos em fila, conduzindo um elemento com o abdômen expandido. Estas figuras são, no geral, filiformes e apresentam cabeças resolvidas em forma de “C”, discutidas na tradição seguinte;

6) A Tradição Nordeste foi reconhecida por Guidon, na Serra da Capivara, Sudeste do Piauí. Comporta subtradições ou estilos que tem como elemento comum o dinamismo, as cenas de ação, de dança, caça e cópula. Antropomorfos em oposição “dorso a dorso” são frequentes, com o elemento triangular sempre associado. Aparecem muitos zoomorfos e sinais geométricos irreconhecíveis. Nesta tradição são notadas as subtradições “Serra da Capivara”, com os já citados grupos de pequenos antropomorfos; a “Serra Branca”, com antropomorfos de corpos retangulares, alongados verticalmente, cocares e corpos completamente desenhados, no interior, como representação de pinturas corporais; por fim, a “Subtradição Seridó”, reconhecida nesta região por G. Martin, com figuras antropomórficas ou zomórficas apresentando a característica cabeça em forma de “C”. Esta representação humana está presente nos Abrigos Vermelhos (MT), Sete Cidades (CE) e algumas partes da Califórnia e do México. Estas convergências foram estudadas recentemente pelo norte-americano Richard (“Dito”) Morales, na sua tese de doutoramento;
 
7) A Tradição Agreste foi estabelecida por Alice Aguiar em diferentes sítios nordestinos, tendo como elemento diagnóstico os grandes “bonecões”-antropomorfos fatura grosseira, desprovidos de detalhes -, que aparecem também na a região de Irecê, na Bahia;

8) Na tradição São Francisco, padrões policrômicos altamente complexos compreendem quase 100% das figuras. São, na maioria, polígonos, muitos quadriláteros divididos, internamente, por linhas vermelhas ou ocres, muitas apresentando sinais de repintura e retoque. Em Barrinha, perto de Carinhanha, na Serra do Ramalho, um sítio contendo centenas desses grafismos foi localizado por este autor, no teto de um abrigo rochoso encravado numa cratera de dificílimo acesso sem equipamentos de alpinismo. Vasos de cerâmica indígena estavam ainda intactos, a céu aberto, sobre cinzas de fogueiras protegidas da chuva, do vento e de curiosos naquele local inóspito. Estes grafismos São Francisco lembram, vagamente, padrões decorativos cesteiros ou a complicada decoração da cerâmica marajoara;


 

9) As tradições amazônicas, apesar de terem sido primeiramente descritas por Koch-Grunberg, no XIX e, por Silva Ramos, nas primeiras décadas do XX, são hoje as menos conhecidas tradições rupestres brasileiras; M.Consens e E. Pereira (1997) trabalharam na classificação dos dados disponíveis relativos a esta vastidão territorial. No geral, a arte rupestre amazônica apresenta poucas correlações com congêneres das outras regiões brasileiras.

APROXIMAÇÕES ETNO-HISTÓRICAS NA ÁREA

Fontes históricas apontam à presença de diferentes grupos etnolinguísticos no atual território baiano. Estão os Kiriri, possivelmente, entre os mais antigos homens a se assentarem na área, com vocabulário algo relacionado a certas línguas andinas contemporâneas. Embora outrora reconhecidos como grupo lingüístico independente, os dialetos Kiriri são hoje associados ao tronco Macrogê, de ampla distribuição no atual estado baiano. Estes são representados pelos Acroá, Kaiapó, Masakará, Aimoré (Botocudos), Guerém (Krem), Kamakã, Patashó e Sokó; Os grupos tupifônicos, habitaram principalmente na costa marítma e nas margens dos grandes rios do interior, onde podiam pescar com suas canoas, caçar, coletar mariscos, praticar a silvicultura e a sua agricultura incipiente de feijões, milhos, batatas e abóboras. Foram expulsos ao sertão pelo colonizador, ali deixando, eventualmente, traços da sua marca étnica na arte rupestre local. Os assentamentos europeus na região central da Bahia apareceram após o XVIII, quando descendentes do “ Caramurú” estabeleceram currais na ribeira sãofranciscana e na região de Serrinha. Joana Guedes de Brito, herdeira da Casa da Torre e proprietária das terras entre Serrinha e o Rio das Velhas, próximo à atual Belo Horizonte, abriu sobre milenares caminhos indígenas a legendária “Estrada da Tropeira Joana”, onde hoje corre, asfaltada, a Estrada do Feijão, ligando Feira de Santana a Xique- Xique. Artefatos desta época são encontrados nas propriedades à margem desta antiga estrada. Longas estações secas e falta de programas efetivos de irrigação estagnaram a economia de grandes áreas do semi-árido baiano, onde se localiza grande parte da arte rupestre local. Isso contribui, de certo modo, para minimizar a destruição destes sítios arqueológicos, como ocorreu com os sítios costeiros, perturbados por intensiva agricultura, mineração e urbanização.

 
 


BREVE PERFIL DA ARTE RUPESTRE DO SERTÃO BAIANO

O Estado da Bahia, em grande parte, cobre as partes mediais da Cordilheira do Espinhaço e da bacia do São Francisco. Devido à sua variedade temática, a arte rupestre local aparenta ser fruto da convergência de diferentes grupos humanos que ali viveram (Martin,1996:242), trazendo e transformando práticas culturais diversas. A maior parte da obras pictoriais rupestres são pinturas digitadas em hematita, carvão, branco de magnésio e tauá ocre, todos estes apresentando diferentes matizes cromáticos, ou pela sua própria composição físico-quimica ou pela seu estado tafonômico . Os temas mais freqüentes são:

1) Séries de linhas verticais paralelas, com ou sem uma linha horizontal as ligando, por cima. Em outras partes do país, estas linhas aparecem totalmente, ou em parte, com cabeças, cocares, pernas e braços acrescentados, sugerindo assim serem recenceamentos de grupos humanos que passam por certos locais;
 
2) Composições redondas usando círculos simples, concêntricos ou radiados, muitas vezes associados à figura de um réptil, como se vê na Toca do Cosmos, escavada por Bryan (1993). Este painel apresenta mais de 40 grafismos circulares no seu teto. Beltrão classificou estas figuras numa tradição “Astronômica” e, Caldeirón, na sua tradição “Simbolista”;


 

3) Zoomorfos, incluindo quadrúpedes (isolados ou em grupo), sapos e répteis, classificados por Caldeirón numa “Tradição Naturalista”;

4) Antropomorfos, estáticos e em ação; mãos impressas, chapadas e decoradas; pinturas de pegadas de pés;
 
5) Seqüências de pontos, campos quadrangulares ou circulares pontilhados; elipses pontilhadas, com marcações regulares intermediárias, semelhantes às encontradas nas grutas de Toquepala e Tacna, no Sul do Peru (Kaufmann Doig, 1996:1996:54). Os campos pontilhados e os grafismos circulares (“solares”?) são, freqüentemente, associados à figura do réptil e podem ser relacionados a rituais pluviomágicos (Ott, 1993:84);

 
6) Signos geométricos variados de significação imprecisa, repetidos com alguma variação, em certas áreas;
 
7) Longas linhas finas, riscadas a carvão, nos intermédios de figuras mais antigas, vermelhas; D.VIALOU anotou este mesmo elemento gráfico em Rondonópolis, MT(c. p.).
 
8) Bastonetes (linhas verticais paralelas) soltos ou ligados pelo topo por uma linha horzontal [da extensão da seqüência de linhas verticais ou mais comprida], como se fosse um quipo andino, pintado;
 
9) Grafitti históricos de diferentes da tações


CONCLUSÃO

Como em toda parte do mundo, a arte rupestre na Bahia parece ser fruto de intenções multifuncionais, servindo como memorial de mitos, rituais ou servindo a propósitos prático-mnemônicos, como assinaturas pessoais, marcas étnicas ou simples atividades lúdicas. A morfologia do desenho, técnicas de aplicação e composição do pigmento apontam para diferentes inserções produzidas por diferentes grupos humanos que agiram em diferentes momentos. Esta asserção baseia-se, parcialmente, na presença de pinturas quase transparentes, “desgastadas”, junto de outras apresentando camadas de tinta mais espessa. Poucos sítios foram sistematicamente estudados na área em foco sendo quase todo o trabalho de mapeamento estilístico ainda está por ser realizado, permitindo algum entendimento dos movimentos étnicos pré-históricos. Os grafitti contemporâneos, juntamente às mineradoras e ao fabrico da cal constituem os maiores riscos enfrentados, no momento, pela arte rupestre local.

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Cómo citar este artículo:

Albagli de Almeida, Guilherme y Farias, Luiz Henrique
“Considerações sobre a arte rupestre no estado Da Bahia, Brasil”
.
En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/dabahia.html

2008

BIBLIOGRAFÍA


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PROUS, A - Arqueologia Brasileira UNB, Brasília,1992

ROHR, J.A - Petroglifos da Ilha de Santa Catarina. São Leopoldo, 1969
 
Este trabalho é dedicado à Profa. Dra. Janete Ruiz de Macêdo e à sua valorosa equipe que, com muito empenho e amor, conduzem os trabalhos do Centro de Documentação e Memória (CEDOC) da Universidade Estadual de Santa Cruz


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