Rabiscando celas: Arqueologia Cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato - PI
Rosivânia de Castro Aquino. rosivania.arqueologia@gmail.com
Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade Federal do Vale do São Francisco; mestranda em Arqueologia na Universidade Federal do Piauí. Rua João Ferreira dos Santos, S/N; Bairro Campestre; São Raimundo Nonato – PI; CEP: 64.770-000.
Celito Kestering. celito.kestering@gmail.com
Licenciado em Filosofia, Psicologia e Sociologia pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (1974); bacharel em Agronomia pela Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco – FAMESF (1980); mestre em História (2001) e doutor em Arqueologia (2007) pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Professor adjunto 4, no Colegiado do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Rua João Ferreira dos Santos, S/N; Bairro Campestre; São Raimundo Nonato – PI; CEP: 64.770-000.
RESUMO
Com o advento da Arqueologia Moderna, os estudos relacionados a eventos coloniais e pós-coloniais têm sido cada vez mais frequentes. Compartilhando do enfoque de Schiffer (1975) de que o objeto da Arqueologia é a relação entre o comportamento humano e a cultura material em todos os tempos e lugares, realiza-se o presente trabalho com o propósito principal de estudar e analisar as manifestações rupestres pós-coloniais da Penitenciária Tenente Zeca Rúben, na cidade de São Raimundo Nonato - PI, que esteve em vigência entre 1967 (período da ditadura militar) até 2007. Como se sabe, o homem pré-colonial pintava as paredes de abrigos, rochas alcantiladas, superfície de afloramentos e matacões para expressar suas memórias e aspectos relevantes de sua vida cotidiana. Nas pichações, nas obras de arte e em outras expressões de grafite, realizadas em suportes rochosos, paredes de concreto ou de alvenaria rebocada, perpetua-se essa prática até a contemporaneidade. Com base nessas constatações, a pesquisa realizada na Penitenciária, partiu do pressuposto de que os dispositivos parietais da cela 2 contêm um tipo de comunicação consciente e simbolicamente estruturada. Por meio da Arqueologia cognitiva e da Neuroarqueologia, compreende-se que as unidades pictóricas impressas nas paredes e no teto são vetores das relações sociais dos presidiários. Deste modo, os registros gráficos pós-coloniais estão carregados de uma miríade de encargos, intrinsicamente conectados, de fundamental importância para a compreensão daquilo que se apresenta aos olhos do observador que detém o código. Segregam-se, analisam-se os registros e se faz a relação deles com informações orais, para propor o mapa cognitivo dos presos e a relação do que eles pensavam com as ideologias dominantes e com grupos minoritários da sociedade de São Raimundo Nonato – PI e da região Sudeste do Piauí.
Palavras-chave: Arqueologia Cognitiva. Registro gráfico pós-colonial. São Raimundo Nonato – PI
ABSTRACT
With the advent of modern archeology, the studies related to colonial and post-colonial events have been increasingly frequently. Sharing Schiffer approach (1975) that the object of archaeology and relationship between human behavior and material in all times and places, is held the present work with purpose director of study and analyze how rock demonstrations postcolonial of corrections lieutenant Zeca Reuben, in São Raimundo Nonato - PI, that he was in force between 1967 (the military dictatorship period) until 2007. As is known, the man painted pre-colonial as walls of shelters, craggy rocks, surface outcrops and boulders paragraph expressing your memories and relevant aspects of your everyday life. In graffiti, the artworks and other expressions, graphite, held in rocky mounts, masonry concrete walls plastered or, is perpetuated this even a contemporary practice. With bases in these findings, one held in penitentiary research, departed the parietal the device assumption of cell 2 contains hum kind of conscious communication and symbolically structured. By means of cognitive archaeology and neuro archaeology, it understands that the pictorial units printed at walls and homeless are vectors of social affairs of prisoners. Thus, the post-colonial graphics records are full with a myriad of charges, connected intrinsically, of fundamental importance to understanding what is observed by the observer that have the code. On classify, analyze the records and make a their relation to oral information, paragraph proportionate cognitive map of prisoners and que interface they thought with as dominant ideologies and minority groups in society of São Raimundo Nonato - PI and southeast of Piauí state.
Keywords: Cognitive Archaeology. Registration postcolonial graph. São Raimundo Nonato – PI.
1. INTRODUÇÃO
A proposta apresentada para a presente pesquisa partiu de leituras relacionadas à Arqueologia da Repressão e, de modo mais específico, aos estudos dos antropólogos Rodrigo Navarrete S. e Ana María López Y (2008). Esses pesquisadores buscaram compreender e interpretar as expressões gráficas e representações pictóricas realizadas nas paredes e outras superfícies do Quartel San Carlos na cidade de Caracas, Venezuela e sua conexão com a Arqueologia.
Nesta pesquisa adotam-se os pressupostos teóricos e metodológicos utilizados por esses antropólogos para abordar as representações rupestres pós-coloniais da Penitenciária Tenente Zeca Rúben, da cidade de São Raimundo Nonato – PI que despertaram grande curiosidade a respeito das manifestações simbólicas produzidas pelos presidiários contemporâneos. Aproveita-se o ensejo para buscar compreender os princípios universais que regem as manifestações do comportamento e da mente, entendidas por meio do arcabouço teórico da neurociência que trata dos processos cognitivos humanos.
Os registros gráficos pós-coloniais da Penitenciária Tenente Zeca Rúben são artefatos arqueológicos e, como tais, necessitam de metodologias e técnicas próprias dessa área do conhecimento. Essa proposição adquire importância no momento em que se percebe a necessidade de compreender, de forma bem clara, o que se está trabalhando. Desta forma, o cerne da pesquisa reside na interligação ou mesmo no diálogo entre os registros gráficos, os mecanismos universais de representação e as teorias cognitivas.
Os interesses deste trabalho se situam, também, em como as ciências cognitivas podem auxiliar na compreensão da criação e utilização dos registros gráficos como forma de expressão simbólica. Para tanto, adota-se a fundamentação teórica da Arqueologia Cognitiva e da Neuroarqueologia para o entendimento das construções estruturadas na conformação e elaboração dos painéis rupestres realizados nas celas e em outros espaços da aludida penitenciária.
É benfazejo lembrar que a região de São Raimundo Nonato - PI, onde este trabalho se insere, encontra-se junto ao Parque Nacional Serra da Capivara, onde há uma das maiores concentrações de registros rupestres cadastrados do Brasil. Segundo os dados da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), em 12 mil anos da pré-história local, os grupos que ocuparam a região evoluíram culturalmente e as pinturas rupestres constituem um testemunho desta transformação. Pode-se observar a evolução dos registros rupestres nas mudanças técnicas, na variação das temáticas, e na maneira como eles foram representados.
A arte rupestre representa a materialidade do sistema simbólico do homo sapiens. Ela se manifesta como uma arte fascinante e envolta de mistérios que se consagra como uma das mais importantes fontes de informação sobre as origens intelectuais e artísticas da humanidade. Há milênios, as paredes de abrigos, rochas alcantiladas, superfície de afloramentos e matacões serviram como suportes para pinturas e gravuras que expressavam as memórias e outros aspectos relevantes da vida cotidiana de diferentes grupos.
André Prous (2005) lembra que as palavras arte e artista têm a mesma raiz latina do termo artesão. O sentido original do termo é o conhecimento de regras que possibilitam a realização de uma obra perfeitamente adequada à finalidade concebida pelo homo artifex. Assim, a arte rupestre demanda um domínio integrado de muitos aspectos da vida social do grupo do artista que a produz. Em nível de Brasil, em certos casos, poderiam ser complementares à fascinante pintura corporal ainda praticada por algumas tribos indígenas.
É fecundo aclarar que nesta pesquisa adota-se o termo registro rupestre a fim de evitar ambiguidades à subjetivação da epistemologia da palavra arte que geralmente se atrela à visão do estético. Neste sentido Martin (2008, p. 231) adverte que:
A discussão do valor como “arte” dos registros rupestres tem sido objeto de polêmicas entre arqueólogos e historiadores da arte (...). O arqueólogo não poderá ignorar os registros rupestres na sua dimensão estética, considerando-se a habilidade manual e o poder da abstração e de invenção que levaram o homem a usar recursos técnicos e operativos nas representações pictóricas pré-históricas. Por muito que o arqueólogo queira inibir-se da valorização estética do registro rupestre, procurando utilizá-lo apenas como uma parte do contexto arqueológico. (...) O que o arqueólogo não se pode permitir é a escolha de determinara área arqueológica como objeto de estudo, porque as pinturas ou gravuras rupestres ali existentes sejam especialmente belas e abundantes, ricas de temáticas e policrômicas, etc. e somente por isso. A riqueza de dados que o estudo e a reflexão sobre a arte rupestre podem fornecer à história da Arte, não é fundamental aos arqueólogos.
Partindo desse enfoque, os registros rupestres consagram-se como manifestações de cunho cultural e comunicativo, presentes por toda a trajetória do homo sapiens, desde períodos remotos da pré-história até a contemporaneidade. Os registros rupestres dados como pré-históricos ou pré-coloniais são oriundos do paleolítico superior e se manifestam em distintas partes do mundo. Eles são geralmente marcados por representações pintadas ou gravadas de antropomorfos, zoomorfos e expressões enigmáticas contempladas nas mais variadas temáticas e técnicas.
O fato é que os registros gráficos, passados ou contemporâneos, têm o objetivo de transmitir algo a alguém. Neste sentido, se observa a notoriedade que cada traço, linha, esboço ou objeto desenhado por povos de um passado distante ou mesmo da atualidade. Eles são importantes para a compreensão de uma série de aspectos do comportamento humano. Eles conservam significados emblemados em simbologias, ideologias, processos semânticos e vivências cotidianas que se traduzem em campos de estudo que tanto intrigam a comunidade científica e os curiosos sobre o tema.
Antes de explicitar sobre as manifestações rupestres contemporâneas, como a pichação e o grafite, elucidam-se os motivos que levaram a se adotar o termo pós-colonial na presente pesquisa. Lembra-se que quase sempre, se não sempre, o discurso pós-colonial, conforme Said (2006) direciona-se para o entendimento das experiências coloniais. Com ele frequentemente se enfatiza a agência indígena e se investigam as formas híbridas, fronteiras e identidades culturais criadas pelo colonialismo.
Moore-Gilbert (2000) propõe que a temática pós-colonial atue na pesquisa arqueológica com base nas considerações acerca da identidade, fronteiras e outras mais. Neste sentido a Arqueologia Pós-colonial pode ser compreendida como uma articulação entre os estudos pós-coloniais e a pesquisa arqueológica sob três principais aspectos:
I. Interpretativamente, ao investigar episódios do passado da colonização e do colonialismo por meio do registro arqueológico;
II. Historicamente, ao destacar o papel da Arqueologia na construção e na desconstrução dos discursos coloniais;
III. Metodologicamente, ao propiciar a descolonização da disciplina e orientar por uma prática ética da Arqueologia Contemporânea.
Liebmann (2008) mostra que esses três aspectos acentuam alguns dos marcos teóricos fundamentais que já fazem parte da pesquisa arqueológica nas Américas, quais sejam:
I. investigações sobre o hibridismo e a diáspora nas formações culturais e sociais pós-coloniais;
II. desmonte do essencialismo construído nos discursos coloniais e
III. abertura do caminho para a multivocalidade das vozes silenciadas.
Na presente pesquisa expande-se o termo pós-colonial para as expressões rupestres contemporâneas, uma vez que conjuga as relações humanas e a cultura material, como também é um útil marco temporal distinto das representações dos povos pré-coloniais.
Sobre o termo grafite, Ferreira (1985) lembra que ele tem seu registro histórico evidenciado nos murais da antiguidade, mais precisamente nos túmulos dos faraós egípcios, com o predomínio da função decorativa e o requinte de técnicas utilizadas, narrando fatos que entrelaçam imagens e textos. Assim também os primeiros cristãos, em reuniões secretas, deixaram seus registros em forma de grafite com os símbolos da Igreja nas catacumbas romanas.
No que concerne à pichação, Ramos (2007) afirma que seus registros históricos estão presentes nas cidades antigas. Há exemplos nas paredes de Pompeia com registros diversos, dentre os quais, destacam-se palavras de baixo calão, cartazes eleitorais, anúncios e poesias.
Na Idade Média, a Santa Inquisição perseguia e castigava as bruxas, cobrindo-as com piche. Paredes de conventos eram pichadas por padres de ordens distintas. Desta mesma forma, quando se queria atacar uma pessoa, pichava-se a parede de sua casa, denunciando suas más qualidades.
Téllez (1987) assevera que no Brasil, durante os anos de ditadura militar, a pichação e o grafite entraram em decadência pela força da censura e do autoritarismo. Elas ressurgiram, porém, com frases enigmáticas de protesto e de humor. Por ser considerada ilegal e de caráter político subversivo, esta atividade acontecia sempre à noite, evidenciando a necessidade de materiais que contribuíssem com a rapidez necessária para a sua execução. Com sua popularização, perdeu-se de certo modo o seu caráter político, tornando-se espaço para declarações de amor, piadas ou registros de nomes de seus autores.
Neste sentido, em conformidade com Navarrete (2008), o grafite e as pichações podem representar essencialmente artefatos arqueológicos e mensagens políticas profundamente identificadas como mecanismos de difusão e ou protesto contra os aparelhos repressivos do Estado, ou ainda como meio de comunicação visual, espontâneo, efêmero, impessoal, clandestino e alternativo. Assim, estes registros gráficos pós-coloniais surgem como os mais potentes e plurivocais artefatos culturais estéticos e políticos das culturas urbanas ocidentais.
Conforme López (2008), um dos lugares prediletos para o afloramento desses registros gráficos pós-coloniais, grafite e pichações, são os espaços carcerários. Dado o seu duplo caráter de serem públicos e privados, eles se convertem em espaços mais propícios a uma comunicação indireta e nada imediata entre os indivíduos. Os espaços internos das celas se convertem numa superfície branca vazia, numa imagem de “página aberta”, que convidam ao detento, frequentemente sem alternativa comunicacional direta, a expressar de forma privada e pública, suas mensagens, ansiedades e necessidades políticas, sociais, raciais, sexuais e de gênero.
Salienta-se que o tema das manifestações de grafite em suportes fixos ou imóveis, de maneira geral, não é uma abordagem nova para a Arqueologia e nem exclusividade do mundo moderno. Diferentes campos e abordagens estão presentes nos estudos de arte rupestre (HORTA, 2004; VIALOU, 2005; PROUS, 2007) e em contextos da Antiguidade greco-romana (GARRAFONI, 2002; FUNARI, 2003; FEITOSA, 2005). Mais recentemente eles se fazem presentes no âmbito da Arqueologia da Repressão e da Resistência, em campos de concentração e torturas clandestinos da América Latina (NAVARRETE e LÓPEZ, 2008).
Assim Zarankin (2008) afirma que, sem dúvida, as pichações e os grafites são parte da memória das cidades e da vida social das pessoas que passam ou já passaram em frente dessa cultura material, bem como das formas de resistência cotidiana que são ali engendradas. É fato que tais registros gráficos são, por vezes, silenciados pelo esquecimento, ou mesmo, apagados por tensões e conflitos das políticas patrimoniais vigentes.
Com base nessas constatações, a presente pesquisa sobre os registros pós-coloniais da Penitenciária Tenente Zeca Rubem em São Raimundo Nonato - PI partiu do pressuposto de que os dispositivos parietais das celas contêm um tipo de comunicação consciente e simbolicamente estruturado. Com eles se busca compreender e interpretar, por meio da Arqueologia Cognitiva e da Neuroarqueologia, as unidades gráficas, desenhos, pichações e gravuras dos painéis rupestres da cela 2 que apresentam relações espacialmente significativas.
Elas representam uma comunicação articulada que exige uma organização interna por parte dos detentos, para que se faça inteligível, portadora de sentidos e compreensível por aqueles que compartilham o seu código de leitura.
A relevância do trabalho reside na necessidade de se ampliarem os estudos arqueológicos da região de São Raimundo Nonato que, por excelência, contemplam o modus vivendi et operandi do homem pré-colonial, ainda que fazendas de gado e outras culturas históricas tangíveis e intangíveis já estejam recebendo alguma atenção. Alvitra-se o estudo das narrativas multivocais e democráticas desses registros pós-coloniais que se inserem dentro da roupagem da Arqueologia Moderna. Direciona-se, então, para um domínio científico acadêmico com proeminência social, geradora de conhecimento útil e de serviços fundamentais à sociedade, muito embora careça de compreensão em toda a sua complexidade, enquanto serviço intensivo de saberes patrimoniais com importância no setor das indústrias culturais e criativas.
Para a realização deste trabalho contou-se com informações orais e iconográficas sobre a Penitenciária Zeca Rúben, bibliografias disponíveis a respeito das teorias abordadas (Ciências da Cognição como a Arqueologia Cognitiva e a Neuroarqueologia). Contou-se, também, com a manipulação de softwares livres como o Autodesk Iventor [1] para elaboração de plantas baixas e reconstituição do ambiente carcerário da penitenciária em três dimensões, bem como o Inkscape para a edição e manuseio fotográfico que pudesse corroborar com a pesquisa arqueológica.
1. Autodesk Inventor é um programa desenvolvido pela companhia de software Autodesk que permite criar protótipos virtuais tridimensionais. Os modelos 3D gerados pelo Autodesk Inventor, também são funcionais, ou seja, eles funcionam como no mundo real |
2. ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO
A mente constrói a cultura e a cultura constrói a mente (...). Portanto, se quiserem conhecer a mente, não procurem apenas psicólogos e filósofos: certifiquem-se de também procurar um arqueólogo (STEVEN MITHEN 1998, p. 364).
A Arqueologia é reconhecidamente uma ciência que opera em tempos distintos. Ela estuda os múltiplos passados que têm relevância porque têm ligação com a sociedade atual. A crescente consciência do peso que o presente assume na atividade arqueológica, além de reforçar sua natureza multitemporal, vem sugerindo uma valorização preferencial da cultura material e dos lugares. Logo, diferente do que se pensava de Arqueologia no Século XIX que se concentrava no estudo de grupos pré-coloniais e no acúmulo de coleções expostas nos museus de história natural, atualmente, procura-se fazer com que o seu campo de atuação se volte, também, para a compreensão das sociedades coloniais e pós-coloniais.
A teoria arqueológica oferece diferentes perspectivas para se pensar sobre os objetos descobertos. Tendo em vista as limitações para se estabelecer os significados dos artefatos e objetos criados e utilizados pelos antigos, ou pelo homem contemporâneo, os arqueólogos desenvolveram recursos teóricos valiosos para quem estuda a cultura material.
Lima (2011) aborda que, ao longo do pensamento arqueológico, cada vertente teórica trouxe contribuições inestimáveis que permitiram à Arqueologia avanço e amadurecimento, especialmente a partir da segunda metade do Século XX. Se o Histórico-culturalismo presenteou a Arqueologia com conceitos e procedimentos analíticos básicos para o entendimento da cultura material, a Arqueologia Positivista ou Processual foi profícua na geração de métodos e o Pós-processualismo, ou Arqueologia Contextual deu à disciplina uma densidade teórica nunca antes alcançada, reposicionando-a no cenário das ciências sociais.
Essas contribuições cumulativas possibilitaram a um leque considerável de pesquisadores de todas as tendências, a incorporação de muitas críticas procedentes e fundamentadas, assim como a flexibilização de posicionamentos antes firmemente enraizados, viabilizando o surgimento de exímias combinações.
Assim, como advoga Hodder (1999), aparados as limitações e os excessos de cada uma delas, não apenas os pós-processualistas se conscientizaram das restrições da aplicação da metáfora, da linguagem à cultura material, como os processualistas convictos incorporaram aspectos ideacionais da cultura as suas investigações, como foi o caso da Arqueologia Cognitiva e, no campo do Pós-Processualismo, a Neuroarqueologia.
2.1. Os Caminhos da Arqueologia Cognitiva
Em consonância com Guedes (2014), a Arqueologia Cognitiva surgiu por meio de debates entre os processualistas e os pós-processualistas e é, em muitos aspectos, um dos ramos mais novos da Arqueologia Moderna. Ela foca seus esforços no desenvolvimento de ferramentas e meios de inferências sobre as manifestações cognitivas e simbólicas do homem pretérito, que sem dúvida podem ser aplicadas ao homem contemporâneo. Com a participação ativa de grandes estudiosos, a Arqueologia Cognitiva tornou-se uma ferramenta verdadeiramente útil e interessante para se interpretar as manifestações simbólicas e os comportamentos cognitivos das culturas, sejam elas passadas ou presentes.
Guedes (2014) assevera que uma leva de arqueólogos inaugurou essa linha de pensamento, sustentando a ideia de que todo o processo humano envolvendo a produção material, ou seja, tudo aquilo que é idealizado, elaborado, criado e manufaturado pelo homem, em outras palavras, a cultura material, envolve indissociavelmente a essência cognitiva. Tanto é que Refrew (1993, p. 247) apresenta um estudo apoiado por outros pesquisadores de renome como Hodder, Zubrow, Malafouris, entre outros, focando na premissa que “nenhum aspecto da sociedade humana, passado ou presente, pode ser estudado de maneira satisfatória sem levar em conta a dimensão cognitiva”.
Uma das principais questões sustentadas por Hodder (1999) sobre as correntes teóricas anteriores é que nenhuma delas deu a devida atenção ao aspecto simbólico e ao sujeito na construção de conhecimentos sobre as culturas estudadas. Assim, com a abertura teórica promovida pelo Pós-Processualismo, uma grande variedade de influências surgiram na prática cognitiva em particular, mas também na Arqueologia em geral. A principal busca foi a de tornar esta linha interpretativa capaz de fornecer uma “voz independente” aos debates intelectuais e públicos.
A inauguração por meio da Arqueologia Pós-Processual de uma variedade de abordagens, dentre elas a importância do estudo do simbólico, criou um panorama de tendências. Por este motivo, Renfrew (1998) chama a atenção para tal empreitada. Imbuído da necessidade da interdisciplinaridade, ele diz que os arqueólogos, partindo das mesmas realidades contextuais, podem olhar para um mesmo objeto de múltiplas formas, procurando diversas explicações.
Em conformidade com Renfrew (1998, p. 356), a Arqueologia Cognitiva trabalha com o pressuposto de que é possível compreender alguns processos imateriais responsáveis pela criação de determinado vestígio material:
[...] focaliza, (...), na tarefa urgente de desenvolver meios de formação de estruturas de inferências, numa maneira explícita (e com um sentido científico) que permitirá melhor compreender como as pessoas usaram suas mentes, e formularam e utilizaram conceitos úteis nas sociedades. Essa é a tarefa da arqueologia cognitiva-processual.
2.1.1. Linhas de Compreensão da Arqueologia Cognitiva
Apesar da existência, dentro da Arqueologia Cognitiva, de duas linhas de compreensão: a interpretativa e a cognitiva – processual, as perspectivas abordadas por Renfrew (1998) também são contempladas nos trabalhos de Hodder (1999), Malafouris (2009) e Segal (1994).
Na linha interpretativa os estudiosos procuram avaliar o sentido das expressões simbólicas humanas, ou aproximar-se de uma explicação do seu significado ou intenções. Neste sentido, Hodder (1999) ventila a possibilidade de se conhecerem os significados, construídos pelos homens e mulheres do passado ou do presente, conservados na cultura material. De modo geral, recentemente se concorda que o que distingue mais claramente a espécie humana das demais formas de vida é a capacidade de utilizar e interpretar os símbolos.
Hodder (1999) ainda postula que os símbolos inserem-se na ideia dos princípios universais, que é a base pela qual se pode compreender a linguagem mais simples explicitada pelos testemunhos materiais. Ela é simples quando colocada em contraste com a linguagem falada ou escrita, que carrega dificuldades inerentes. Se por um lado a cultura material é mais ambígua do que a verbal, por outro, ela é mais simples, visto que não é uma linguagem propriamente dita, mas sim o conjunto de ações e práticas do mundo. Ela é, por isso, uma linguagem atingível.
Em conformidade com Guedes (2014), a cultura material construída pelas pessoas está ligada a longos processos nos quais os grupos formam seus meios sociais de sobrevivência, de tal modo que os significados culturais ganham força porque são construídos na prática e na rotina do contexto cotidiano. Assim o arqueólogo dispõe de alguns elementos para dar sentido ao mundo material. As interpretações que ele faz balizam-se na própria cultura que estuda. Ao mesmo tempo o arqueólogo é influenciado e guiado pela sua própria sociedade e cultura, seus conceitos, escolhas teóricas e metodológicas, enfim sua realidade.
A linha interpretativa está carregada de interpretações subjetivas, mas, se imbuída de rigorosos estudos teóricos e metodológicos, em constante desenvolvimento. Ela possibilita informações objetivas sobre o passado ou presente. Se os objetos materiais ganham sentido com o uso, e os artefatos são manipulados para fins sociais, “definindo tipos”, os arqueólogos precisam examinar a associação histórica dos traços para conseguir entrar nos sentidos subjetivos que eles conotam. Desta forma, as preocupações de Hodder (1999) visam ultrapassar a maneira de se pensar a Arqueologia que vinha sendo feita comumente tanto pela linha processual quanto pela linha pós-processual.
Para a segunda linha de compreensão, denominada Cognitiva Processual, adotada no presente trabalho, as pesquisas giram em torno do entendimento de como os símbolos se estruturam. Renfrew (1998, p. 357) explica:
Um componente importante da abordagem cognitiva processual é a proposta de examinar as maneiras nas quais os símbolos são utilizados. Isso pode ser contratado com a tendência de buscar, ao invés de determinar seus “significados”, que geralmente seria o objeto da abordagem anti-processual ou interpretativa.
Renfrew (1998) enfatiza que, de modo geral, é impossível inferir o significado de um símbolo dentro de uma cultura, dado somente por meio da forma simbólica da imagem ou objeto. Deve-se então observar como se utiliza a forma e compreendê-la no contexto dos demais símbolos. Em consequência, a Arqueologia Cognitiva tem de ser bastante cuidadosa a respeito do contexto específico do descobrimento: o conjunto, a agrupação, o que importa, no objeto individual tomado isoladamente.
Assim, pode-se avaliar uma série de construções de ordem cognitiva, sem se precipitar na interpretação de seu significado. As manifestações simbólicas trazem um campo extremamente vasto para a compreensão das bases neurológicas do cérebro humano. No entanto, essa compreensão não atinge o campo semântico. Ressalta-se com o próprio Refrew (1998), que essa linha de pesquisa depende de uma boa dose de avaliações subjetivas que não retiram o teor científico na qual se estrutura.
Para melhor explicitar o uso da linha de compreensão Cognitiva Processual, o primeiro passo concreto é supor que existe em cada mente humana uma perspectiva do mundo, um marco interpretativo, um mapa cognitivo[2] (RENFREW, 1998). Os humanos não atuam somente em relação a suas impressões sensitivas. Eles atuam, também, com base no seu conhecimento real do mundo, por meio do que eles interpretam as impressões e o seu significado.
2. Renfrew (1998) enfatiza que mapa cognitivo é um conceito análogo ao de um mapa mental de que falam os geógrafos, embora não só se restrinja a representação das relações espaciais. A cognição é um conceito geral que alcança todas as formas de conhecimento, incluídos a percepção, o raciocínio e o julgamento (CHAPLIN, 1985). Os mapas cognitivos podem ser entendidos como representações gráficas de conjuntos de representações discursivas feitas por um sujeito (o ator) com vistas a um objeto (o problema), em contextos de interações particular, segundo Cossete e Audet (1992 |
Renfrew (1998) argumenta que um indivíduo acompanhado de seu mapa cognitivo pessoal reconhece na memória estados passados e imagina no olho da mente, prováveis estados futuros. “Logo, uma comunidade de pessoas que vivem juntas, compartilham da mesma cultura, falam a mesma língua e possuem muitas vezes a mesma visão do mundo ou jogo mental” (RENFREW, 1999, p. 386). O indivíduo responde tanto às impressões sensitivas percebidas imediatamente, como ao seu mapa interno que inclui memórias do passado e previsões do futuro. Os indivíduos que convivem em uma comunidade compartilham em certo modo a mesma visão do mundo. Até certo ponto se pode falar de um mapa cognitivo para todo o grupo (Fig. 1).
|
Figura 1 – Esquema do mapa mental dos humanos; Fonte: Renfrew (1998)
|
O conceito de mapa cognitivo resulta da utilidade de se poder empenhar na prática alguns dos elementos relevantes do mundo 3 de Popper para obter novas perspectivas sobre o mapa cognitivo comum de um grupo determinado. Pode-se ainda aspirar novas revelações do modo com que o grupo utilizava os símbolos e, às vezes das relações entre os indivíduos que formavam parte dele.
O mundo 3 de Popper, abordado por Renfrew (1998), insere-se na chamada teoria dos três mundos. Conforme Júlio César (2009) a teoria dos três mundos é bem conhecida. Popper argumenta sobre ela em vários textos, e pode ser inicialmente enunciada de maneira bem simples: um livro, por exemplo, é um objeto físico. Neste sentido, faz parte do que Popper chama de mundo 1. Porém, ele foi escrito por alguém. É o que Popper chama de mundo 2. Entretanto esse livro veicula uma ideia, que pode ser verdadeira ou falsa, consistente ou contraditória. É o que Popper chama de mundo 3.
César (2009) ainda mostra que por mundo 2, Popper entende o mundo dos estados mentais dos seres vivos, das disposições para reagir. Homens e animais, na medida em que possuem corpos, pertencem ao mundo 1. Por possuírem estados mentais, eles também compõem o mundo 2. Os humanos são capazes de ir além e criarem o mundo 3. Popper entende o mundo 3 como o conjunto de produtos da mente, tais como livros, teorias (verdadeiras ou falsas), mitos, etc. Esse mundo 3 é tão real quanto os mundos 1 e 2, não apenas por conter materializações de ideias subjetivas, mas também porque induz os homens não só a produzir outros objetos do mundo 3 mas também a agir sobre os mundos 1 e 2 de tal maneira que descobrem novos objetos do mundo 3.
Diante do que foi explicitado, entende-se que a corrente de pensamento da Arqueologia Cognitiva busca uma interpretação não baseada no que o homem pensa, mas diferentemente, em como ele expressa seu pensamento. Ao se preocupar com os problemas ignorados pelos processualistas, a Arqueologia Cognitiva une as categorias de Binford que relacionam as “atividades humanas” (dinâmica) às consequências dessas atividades que podem estar aparentes na cultura material (estática). A relação entre o homem e a cultura material cria formas de compreensão que permitem ao arqueólogo acessar suas estruturas mentais.
Deste modo, se os objetos materiais não são estudados por eles mesmos. Eles são, acima de tudo, matéria de interesse para o conhecimento de culturas passadas ou presentes. Há muito mais envolvido na produção de cultura material, na elaboração dos registros gráficos dos povos pretéritos ou mesmo das pichações, desenhos e simbologias dos povos contemporâneos, do que suas aparências físicas. Na construção destas culturas materiais encontram-se intrinsecamente conectados ao artefato as pessoas que o produziram, bem como a cultura da qual fazem parte.
2.1.2. Triângulo Cognitivo
Segundo Hodder (1999), a cultura material e o seu significado são muitas vezes complexos, por fazerem parte de uma cultura diferente da nossa. Eles são o produto de uma ação que envolve símbolos e códigos. O seu pragmatismo influencia constantemente no seu significado. Diz-se que a cultura material pode ser lida como um texto, mas diferentemente dele, ela é prática, tecnológica e funcional, e esse fator deve ser levado em consideração no seu estudo. Os significados próprios de uma cultura são compartilhados por todo o grupo. Eles não são ideias presas na cabeça de um indivíduo. Eles são conceitos públicos e sociais reproduzidos nas práticas da vida cotidiana.
Entre a cultura material preservada e os homens que a produziram, existe uma grande quantidade de construções mentais, significados, símbolos, ideias e crenças, que não se refletem diretamente no contexto arqueológico. Assim, o contexto é fundamental para a compreensão das culturas passadas ou presentes, porque artefatos similares podem ter significados diferentes em distintos contextos (HODDER, 1999).
A Arqueologia Cognitiva busca então compreender a cognição humana a partir de um importante prelúdio na mediação de informações acerca da conduta do homem com o ambiente e os objetos inseridos nele. Como base para a compreensão das variáveis da conduta humana Arrizabalaga (2005) a desmembra em: conhecimento funcional do cérebro, suas formas evolutivas; compreensão das capacidades cognitivas / mentais e influências externas que interagem / atuam em seu desenvolvimento funcional.
A relação do homem com o mundo material carrega-se de um valor simbólico que transcende a própria materialidade, ou seja, vai além das suas características físicas. Esta relação pode ser observada como uma cadeia de processos cognitivos. Contudo, não há consenso sobre como eles ocorrem. Mas ao tomar referências de autores como Chaui (2000) e Gärdenfors (2007), que discutem estes processos de forma mais específica, nota-se o contraste sobre como estes processos ocorrem.
Ganascia (1996) afirma que o conhecimento humano se distribui por três polos: a mente, o corpo e a cultura, no chamado “triângulo cognitivo”. Entende-se que a realidade humana é composta por objetos. Ao se compreender os processos que resultam desta relação pode-se começar a compreender, também, os processos que percorrem os três vértices deste triângulo. Uma vez que se separa homem em corpo, mente e cultura, pode-se estudar, no processo cognitivo, cinco categorias básicas: a percepção, a sensação, a interpretação, a significação ou categorização e por último, não menos importante, a apropriação.
A percepção enquanto construção dos conhecimentos singulares ocorre em dois momentos: na sensação que trata da captação de informações por meio dos mecanismos sensoriais do corpo e a interpretação que trata da capacidade mental de organizar as informações recebidas no processo sensorial e permite o indivíduo orientar o seu comportamento. A significação ou categorização, enquanto construção dos conhecimentos plurais efetua-se num processo de estabelecimento de valores / significados para as informações interpretadas. Por sua vez, a apropriação faz paralelos aos valores atribuídos aos objetos e ao ambiente. Estes podem ser de forma seletiva tomada como pertencentes ao indivíduo ou ao seu grupo.
Em analogia ao triângulo cognitivo, Zubrow (1994), por exemplo, com suas ideias abastecidas pelo processualismo, é um dos autores que está preocupado em propor regras gerais para o tratamento da cultura material sob a perspectiva da Arqueologia Cognitiva. Sua concepção volta-se para a intrínseca relação entre a análise científica (real) e interpretação (ideal). Dessa forma o autor se apropria de conceitos-chave, como a representação do conhecimento, esquemas de categorização e a universalidade cognitiva.
Zubrow (1994, p. 107) afirma que “a interpretação ou reconstrução coletiva não é um processo simples e está sempre dependendo de variáveis”. A informação advém do conhecimento do arqueólogo sobre a cultura estudada. Ela parte da habilidade do arqueólogo (do embasamento teórico e cognitivo) e o mais importante, da universalidade dos aspectos da cognição humana. Assim, o conhecimento deve ser construído por meio de três locais de fundamental importância: 1) Produtor; 2) Interpretação; 3) Teoria (categorias utilizadas para decodificar o conhecimento).
Guedes (2014) diz que a linha de pensamento cognitivo em que Zubrow se insere, propõe a formulação de teorias gerais e parte de alguns princípios, ou conceitos-base latentes nas culturas, ou seja, que fazem parte estrutural do pensamento e das ações humanas. Dessa forma, trabalha com categorias universais que são individualizadas culturalmente e expressas por meio do pensamento, da linguagem e das estruturas mentais. Para o referido autor, o conhecimento é uma informação processada cognitivamente. É tanto representado como também é a base da ação e se desenvolve a partir do momento em que o homem, detentor de linguagem, simbolização material e simbólica de seus pensamentos, e carregado de concepções e conceitos, passa a externar seu mundo em forma de imagens.
Imagem é um componente importante da informação armazenada na memória. Quando as pessoas pensam em imagens e quando pensam em palavras? Como essas duas formas estão ligadas? Em que situação uma representação através de imagem é mais apropriada que uma palavra? Ambos os sistemas, imagem e palavra, parecem existir simultaneamente, pois as pessoas modernas usam tanto palavras para narrativas, e imagens mentais para visualização. (ZUBROW, 1994, p. 189-190)
Neste sentido, Zubrow (1994), é partidário da ideia de que toda e qualquer manifestação cultural de um grupo, uma sociedade, é o resultado de materializações em forma de imagens compartilhadas por esse mesmo grupo. Isto faz com que a cognição humana trabalhe por meio de estímulos exteriores selecionados e classifique os conteúdos apreendidos, influenciados e organizados por meio das experiências adquiridas dentro de uma cultura própria.
2.2. Neuroarqueologia: Cérebro e Cultura
De acordo Segal (1994), as ciências cognitivas, também chamadas de neurociências, são abordagens interdisciplinares que se utilizam para o estudo da mente e, em particular, do pensamento e do comportamento inteligente. Elas se desenvolveram por meio de uma fusão interessante entre linguistas, psicólogos, filósofos, cientistas computacionais, antropólogos, neurocientistas e outros. Historicamente, entretanto, as ciências cognitivas não se expandiram para incluir a Arqueologia e suas questões. Todavia, nas últimas décadas, vários pesquisadores perceberam a utilidade desses estudos para a Arqueologia, fato que fez com que Renfrew, Mithen, Malafouris e Frith, principalmente no tocante à utilização da Neurociência e da Psicologia Evolutiva, usufruíssem desse aparato teórico para entender a interface criada entre o cérebro e a produção ou reprodução de cultura e dos comportamentos simbólicos.
Conforme Guedes (2014), os estudos transdisciplinares entre a Arqueologia e as Neurociências vêm sendo desenvolvidas desde, pelo menos, os três últimos decênios do século passado. Mas foi somente a partir do século XXI, com as milhares de transformações sofridas por ambas as disciplinas, tanto no campo teórico como metodológico e prático, que esses estudos se deslancharam e ganharam novas visões.
Os recentes trabalhos desenvolvidos pelas disciplinas vinculadas às ciências cognitivas, e agora sob uma ótica arqueológica, fizeram com que Malafouris (2004) cunhasse o termo Neuroarqueologia. A Neuroarqueologia estuda as questões relacionadas ao conhecimento das estruturas físicas e biológicas do cérebro humano, ligadas ao comportamento preservado nos sítios arqueológicos de maneira geral, e em particular, no sítio de registros rupestres que é objeto desta pesquisa. A junção das ciências cognitivas e as neurociências com a Arqueologia estão proporcionando a compreensão mais aprofundada sobre a maneira como o cérebro humano funciona e como proporciona a criação de cultura, o que possibilita assim um excelente viés para as pesquisas arqueológicas.
De acordo com Malafouris (2010), o objetivo da Neuroarqueologia é, precisamente, canalizar o enorme potencial analítico emergente das pesquisas neurocientíficas, na direção de um programa de investigação integrado, abrangendo todo o espectro das ciências cognitivas e alvejando o entendimento da cognição humana. Além da lógica do "localizador”, ela estuda o surgimento e a variação cultural da inteligência humana, os ingredientes ontológicos de longo prazo da mudança cognitiva e os mecanismos causais que estão na base cognitiva humana, situados desde a Idade da Pedra Lascada até o presente (Fig. 2).
Os experimentos da Neurologia e os dados da Arqueologia, formando a Neuroarqueologia, possibilitam os arqueólogos traçarem um quadro relativamente coerente sobre a evolução da espécie humana. Eles podem compreender o comportamento simbólico observado por meio da cultura material, bem como as possíveis origens da linguagem complexa como vetor de um aprendizado social. Os arqueólogos podem agora entender mais sobre os substratos neurais e biológicos das habilidades cognitivas humanas, além de utilizar esse conhecimento para melhor definir e identificar seus traços arqueologicamente visíveis e suas possíveis assinaturas.
Para Malafouris (2004), todos os produtos materiais são emergências da mente. Por serem sinérgicos não podem ser trabalhados separadamente. Assim, a cultura material é construída em uma função específica na mente. Cada cultura, deste modo, é responsável pela criação de padrões específicos, códigos e valores, reconhecidos pelos seus participantes e para eles fará sentindo, sejam eles feitos por intermédio de uma seleção, escolha ou adaptação. Em resumo, a mente e a cultura relacionam-se intrinsecamente como se fossem uma unidade.
|
Figura 2 – Teoria do engajamento material; Fonte: Malafouris (2010). |
Malafouris (2004) afirma ainda que a Neuroarqueologia foca-se na construção de uma ponte analítica entre o cérebro e a cultura, colocando a cultura material, a noção corpórea, tempo e escala, em longo-termo como temas centrais no estudo da mente. Em outras palavras, a Neuroarqueologia trabalha com a proposta de que o nosso cérebro é formatado de acordo com o ambiente em que vive. Há uma inter-relação dinâmica entre a biologia e o meio externo, tanto natural como cultural.
Em consonância com Guedes (2014), as ações humanas, em última instância, são fruto da relação inerente entre duas partes complementares (mente e cultura). Essas são materializadas por meio de ações cognitivas empregadas na produção de objetos como os registros gráficos. Nos aportes da Neuroarqueologia, e da Arqueologia Cognitiva, esse fato implica em pensamento nas escolhas, codificações, estruturações, classificações, conhecimento, inteligência, ou melhor, em subsídios mentais necessários para a criação e produção dos artefatos arqueológicos.
O conhecimento de como o cérebro funciona é fundamental para a compreensão da materialização do comportamento humano. Assim, o arcabouço teórico da Neuroarqueologia proposta por Malafouris é um interessante fundamento epistemológico no que concerne à aproximação das duas ciências, e mais especificamente, do que existe de mais moderno nas discussões teóricas e empíricas voltadas para o comportamento do homem.
Guedes (2014) advoga que essa ponte teórica entre a Neurociência e Arqueologia, em especial a Cognitiva, proporcionou aos estudos do desenvolvimento cognitivo do homem pretérito pode ser aplicada ao homem contemporâneo, na resolução de questões que regem a materialidade e a produção cultural. A explicação baseada nesse quadro compreende o cérebro, ainda que mantenha características plásticas e que, portanto, são moldadas de formas particulares em culturas distintas, oferecem uma formação biológica ou, como muitos especialistas colocam “pré-formatado”, sendo construído com uma predisposição de agir de determinadas maneiras.
Uma abordagem interessante que se vem discutindo tanto no campo da Arqueologia quanto no das ciências cognitivas é a forma única como os humanos criam os símbolos e como se expressam por meio deles. Ela é completamente diferente da dos outros animais. A capacidade de criação e abstração humana se diferencia de todas as outras, uma vez que a elas são adicionados sentimentos e sensações, memórias e desejos. Compartilhando deste enfoque, a Neuroarqueologia estuda a interface cérebro / cultura na tentativa de entender esse funcionamento do cérebro com as manifestações culturais criadas por ele. Renfrew (2009, p. 56) argumenta:
A virada do século XXI testemunhou uma nova era nas ciências cognitivas e do cérebro que nos permite discutir a antiga questão de o que significa ser humano, a partir de todo um novo alcance de diferentes perspectivas. Nosso comportamento do funcionamento do cérebro humano amplia dia-a-dia e assim também nossa compreensão do caráter entendido, distribuído, encorpado e culturalmente mediado da mente humana.
Pensar cognitivamente um artefato arqueológico de ordem simbólica como os registros gráficos implica pensar por meio de uma dupla consideração. Por um lado a Arqueologia é auxiliada pelas neurociências no conhecimento sobre como o cérebro funciona e reage a estímulos. Por outro lado, ela municia-se de informações sobre como o cérebro foi se desenvolvendo ao longo da história da evolução humana, e como os comportamentos podem ser explicados pela intrínseca relação entre as predisposições imbuídas em nosso dispositivo cerebral e plasticidade inerente a esse órgão tão complexo. Com essa premissa em mente Lewis-Williams e Dowson (1988, p. 211) propõem:
Compreender o cérebro humano nos ajudará a compreender o comportamento humano. Porém não irá nos permitir prever qualquer comportamento. A mente humana é organizada de maneira regular, porém nessa organização, existe um grande espaço para o individual e variabilidade cultural.
O cérebro do Homo sapiens moderno tem a disponibilidade de constituir culturas, línguas, religião e arte. Ele é predisposto a produzir formas básicas que podem ser analisadas por meio de uma linha de pesquisa das neurociências, mas que é adotada pela Neuroarqueologia como Fluidez Cognitiva.
2.3. Neuroarqueologia e Fluidez Cognitiva
Conforme Adolphs (1999), do ponto de vista das neurociências e das propostas advindas dos recentes debates, a fluidez cognitiva estaria na região conhecida como o córtex ventromedial, na parte frontal do cérebro humano e, portanto, tangível. O córtex ventromedial é responsável por fazer as associações entre as experiências emocionais e a tomada de decisões. Foi a possibilidade de conseguir unir dois aspectos distintos do comportamento cognitivo, situados em módulos diferentes para a resolução de problemas, o que fez o cérebro humano se tornar tão complexo.
A fluidez cognitiva quiçá tenha se transformado na principal característica humana de produzir o tipo de cultura e variabilidade artísticas que se tem presente na grande diversidade de cultura material. O cérebro humano evoluiu de uma maneira tão complexa que é capaz de criar mundos inteiros, hipóteses e explicações metafísicas para compreender o mundo externo e se expressar, dialogar e se entender com outros humanos. Além de um mundo real, num piscar de olhos cria-se um mundo de indagações. Por esse viés Deacon (2009, pg. 59) explica:
Somente nós ficamos a considerar sobre o que não aconteceu e gastamos uma grande parte do nosso dia devaneando sobre a maneira que as coisas poderiam ter acontecido se as situações tivessem ocorrido de maneiras diferentes. E somente nós consideramos sobre como seria não ser. (...) Contamos histórias sobre experiências reais e inventamos histórias sobre experiências imaginadas (...). Num sentido real, vivemos nossas vidas nesse mundo virtual compartilhado.
Mithen e Deacon (2009) compartilham da ideia de um mundo virtual, elaborado mentalmente e exposto em forma de composições simbólicas de linguagens organizadas. É a materialização de uma forma de pensar sobre o mundo. É uma externalização simbólica e de linguagens que permitem ao homem até mesmo, conforme Pagel (2008, p. 56) “implantar um pensamento de uma mente diretamente dentro da mente de outras pessoas. Elas podem fazer o mesmo” manipular pensamentos e partilhar um conhecimento de uma mente a outra.
Dentro deste enfoque, os registros gráficos, pichações e outras expressões marcadas em um suporte, por exemplo, foram produzidos de acordo com uma função específica da mente humana. O desenvolvimento cognitivo utilizado para a fabricação dos registros está presente nas próprias pinturas. Por meio de uma construção mental, balizada por uma cultura, esses “desenhos” se formam, obedecendo a normas específicas e ganham sentido dentro da cultura do autor, do seu lugar de criação e produção.
Adotaram-se então, nesta pesquisa, a Arqueologia Cognitiva e a Neuroarqueologia porque se pressupõe que investigando e examinando mais profundamente os arcabouços biológicos (cérebro e mente) pelo conjunto de manifestações rupestres pós-coloniais, possivelmente encontrar-se-á um centro biológico universal. Ademais a Neuroarqueologia está preocupada com os quês, porquês e como? Por que e como os registros emergiram? Quais as formas de significação? Como se podem identificar os vestígios materiais da capacidade simbólica neste tipo de registro arqueológico? Desta maneira, a partir do momento em que se alvitra compreender as manifestações produzidas pelos detentos, preservadas na aludida penitenciária, nota-se que os atos de registro são marcados na comunhão e troca entre a parte biológica (mente) e a parte cultural (desenhos, pichações, murais) que são produtos de suas próprias mentes.
Neste trabalho, propõe-se estudar os registros gráficos com parâmetros da Arqueologia Cognitiva, colocando-os como vetores das relações sociais internas dos presidiários. Para isso imbui-se da premissa de que seus registros são responsáveis por estruturar e interferir no processo de formação de uma cultura material distinta, oriunda de seus esforços cognitivos. Mesmo não se sabendo o seu significado, sabe-se que significam algo e estão carregados de encargos, conectados e importantes para a compressão daquilo que se apresenta aos olhos do observador.
3. A PENITENCIÁRIA TENENTE ZÉCA RUBEN
A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente. (MICHEL FOUCAULT, 1987. p. 262)
Antes de apresentar a historiografia da Penitenciária Tenente Zeca Rúben, faz-se uma breve abordagem sobre o sistema penitenciário para ajudar no entendimento da organização funcional das estruturas físicas e sociais do objeto de estudo deste trabalho.
3.1. Gênese do Sistema Penitenciário
De acordo com Rates (2000), o termo prisão vem do latim prensio, e significa tanto o ato de prender, de deter, de capturar o indivíduo, como o local onde o sujeito fica retido, preso. Na elaboração de leis empregam-se indistintamente essas duas concepções. Além disso, as prisões têm como objetivo básico manter o indivíduo cerceado de sua liberdade até que sua situação se resolva pelas autoridades competentes.
Conforme Salla (2006), até o Século XVIII, as prisões eram marcadas por penas cruéis e desumanas. Nelas não havia privação de liberdade como forma de pena. Elas funcionavam como custódia para garantir que o acusado não fugisse e as provas eram obtidas por meio de torturas muitas vezes realizadas em público. Desta forma o acusado aguardava o julgamento e a pena subsequente, privado de sua liberdade, em cárcere.
Foi apenas no Século XVIII que a pena privativa de liberdade passou a fazer parte do rol de punições do Direito Penal. Neste sentido Foucault (1999) aborda que a mudança de punição veio junto com as mudanças políticas da época. Com a queda do antigo regime e a ascensão da burguesia, a punição deixou de ser um espetáculo público, já que assim incentivava a violência, para uma punição fechada que seguia regras rígidas. Mudou-se o meio de se fazer sofrer. Deixou-se de punir o corpo do condenado e passou-se a punir sua alma. Com essa mudança acabou-se com as punições imprevisíveis e ineficientes do soberano sobre o condenado.
Segundo Carvalho Filho (2002), também no final do Século XVIII surgiram os primeiros projetos do que se tornariam as penitenciárias. Foi então, em 1777, que John Howard (1726-1790) publicou a primeira edição de The State of Prisons in England and Wales na qual fez uma crítica à realidade prisional da Inglaterra. Ele propôs uma série de mudanças, sendo a principal, a criação de estabelecimentos específicos para a nova visão de cárcere. Até então, os prisioneiros, lotados nas prisões de toda Europa e Estados Unidos, ficavam aguardando a punição e estas não possuíam infraestrutura ou eram pensadas na nova realidade punitiva.
O inglês Bentham (1748-1832) era adepto de uma punição proporcional. Ele dizia: “a disciplina dentro dos presídios deve ser severa, a alimentação grosseira e a vestimenta humilhante” porque todo esse rigor serve para mudar o caráter e os hábitos do delinquente. Em 1787, ele escreveu “Panóptico”, concebido como uma penitenciária modelo que é um conceito em que um vigilante conseguia observar todos os prisioneiros sem que estes o vissem. A prisão seria uma estrutura circular, com as celas em sua borda e o meio onde se encontra a torre com um vigia “onipresente”.
Foucault (1999) usava o termo panóptico como uma metáfora para as sociedades ocidentais modernas e sua busca pela disciplina. No modelo panóptico não são necessárias grades, correntes ou barras para a dominação dos presos. A visibilidade permanente é uma forma de poder própria e, segundo ele, não só as prisões evoluíram conforme esse modelo, mas todas as estruturas hierárquicas como escolas, hospitais, fábricas e quartéis.
Em consonância com Salla (2006), na virada do Século XVIII e início do Século XIX, surgiram na Filadélfia, os primeiros presídios que seguiam o sistema celular, ou sistema da Filadélfia. Tratava-se de um sistema de reclusão total, no qual o preso ficava isolado do mundo externo e dos outros presos em sua cela, que além de repouso servia para trabalho e exercícios.
Rates (2000) lembra que em 1820, surgiu outro sistema nos Estados Unidos, conhecido como “Sistema Auburn” ou “Sistema de Nova Iorque”. Este continha certa similaridade com o sistema da Filadélfia, a reclusão e o isolamento absoluto, mas nele a reclusão era apenas durante o período noturno. Durante o dia as refeições e o trabalho eram coletivos, todavia impunha-se a regra do silêncio. Os presos não podiam se comunicar ou mesmo trocar olhares. A vigilância era absoluta.
3.1.1. As Prisões no Brasil
Segundo Fabrinni (2010), no Brasil houve uma reforma prisional nos moldes europeus que o incluiu no rol das nações ditas “civilizadas”. Tal reforma foi muito mais uma adaptação dos paradigmas jurídicos e penais do velho mundo para as necessidades e particularidades da sociedade escravista do Século XIX, do que necessariamente uma mudança. Assim, como quase tudo no Brasil, a modernização do aparato prisional brasileiro não se deu por meio de uma mera cópia fiel dos modelos europeus, mas se apresentou de maneira particularizada, caracterizando-se pela mistura de padrões entre o modelo moderno liberal e o tradicional escravocrata.
Com base nas execuções penais nº 7.210/84, Salla (2006) classifica os estabelecimentos prisionais do Brasil em cinco tipos fundamentais:
a) Penitenciária – destinada aos condenados à pena de reclusão, em regime fechado (Art. 87);
b) Colônia Agrícola, Industrial ou Similar - estabelecimentos construídos para os presos de justiça cujo cumprimento da pena seja em regime semiaberto (Art. 91);
c) Casa do Albergado - destina-se aos presos de justiça cujo cumprimento de pena privativa de liberdade seja em regime aberto e a pena de limitação de final de semana. Nesses estabelecimentos os presos trabalham normalmente durante o dia e recolhem-se à noite (Art. 93);
d) Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico – são estabelecimentos destinados aos inimputáveis e seminimputáveis (Art., 99), ou seja, as pessoas portadoras de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, desde que comprovado que o agente era portador dessa doença quando da prática da transgressão criminal e que era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato. (Art.26) e
e) Cadeia Pública - estabelecimentos prisionais próximo de centro urbano destinado a presos provisórios, ou seja, antes da sentença condenatória definitiva (Art.102).
Conforme Salla (2006), os lugares ou estabelecimentos de segregação de indivíduos são conhecidos atualmente como cárcere, cadeia, presídio, penitenciária, casa de detenção, custodia ou prisão. Antigamente outros nomes também eram empregados como: enxovia, aljube, masmorra, calabouços, ergástulos, dentre outros. Estes se dividem em uma série de repartições: estabelecimentos penais, estabelecimentos polivalentes, estabelecimentos para jovens, adultos e idosos, presidiários, penitenciários, médico-penais, assistenciais e conjuntos penais. Há, também, penitenciárias de segurança máxima especial, de segurança máxima, de segurança média, colônia agrícola, casa do albergado, centro de observação, hospital de custódia e de tratamento psiquiátrico, presídio, cadeia pública, estabelecimentos mistos, patronatos e conselhos da comunidade.
Diante da diversidade de repartições, conceituam-se apenas os recintos relevantes para esta pesquisa: Fabrinni (2010) explica que os estabelecimentos penais são todos aqueles utilizados pela justiça com a finalidade de alojar os presos, quer provisórios ou condenados, ou ainda, aqueles que estejam submetidos à medida de segurança. Estabelecimentos polivalentes são os recintos penais que, de acordo com as necessidades locais, possuem seções, módulos ou anexos com destinações diversas. Eles abrangem, pelo menos, as finalidades próprias do estabelecimento principal, para homens, mulheres (jovens, adultos, ou idosos). Estabelecimentos penitenciários são os recintos penais destinados ao recolhimento de presos condenados à pena privativa de liberdade. Conjunto penal é onde há reunião, em um mesmo lugar, de mais de um estabelecimento penal autônomo.
As penitenciárias podem ser: de segurança máxima especial que diz respeito ao estabelecimento penal destinado a abrigar o preso condenado, em regime fechado, dotado apenas de celas individuais. A de segurança máxima difere desta última somente no sentido que indivíduo pode estar lotado em celas individuais ou em celas coletivas. A de segurança média é o estabelecimento penal destinado a angariar preso condenado em regime semiaberto, dotado de alojamentos coletivos.
Rates (2000) afirma, também, que a prisão é uma medida coagente, de força e acima de tudo um sacrifício da liberdade individual, mas reclamada pelo interesse social porque existem indivíduos que não podem ficar em liberdade.
3.2. História da Penitenciária Tenente Zeca Rúben
A Penitenciária Tenente Zeca Rúben localiza-se na Rua Avelino Freitas-Centro, cidade de São Raimundo Nonato - PI. Ela foi construída por meio de um convênio do Governo do Estado do Piauí, sob a administração de Helvídio Nunes e a prefeitura municipal da referida cidade comandada por Newton de Castro Macêdo. Teve sua inauguração no dia 31 de agosto de 1967 (Fig. 3 e 4).
|
Figura 3 - Placa da inauguração da penitenciária; Foto: Rosivânia de Castro Aquino (2015) |
|
Figura 4 – Fachada da Penitenciária Tenente Zeca Rúben; Foto: Rosivânia de Castro Aquino (2015) |
Em consonância com relatos orais do emérito delegado Atenágoras Araújo[3], último delegado da penitenciária (2003-2008), um dos principais motivos que levou à construção do recinto em estudo foi a disposição geográfica do antigo quartel da Companhia de Policia Militar de São Raimundo Nonato), construído em fins da década de 1950 e 1960. Nessa edificação funciona, atualmente, a Secretária Municipal de Educação, na Praça Júlio Paixão. Logo o quartel residia diante da Praça do Relógio, no principal polo comercial da cidade, rodeado de feiras, lojas e trafego de pessoas.
3.Informação obtida durante entrevista realizada no dia 18 de setembro de 2014, na delegacia da mulher. |
A rua do quartel era ponto de passagem para Igreja Matriz, de tal modo que as senhoras, damas, esposas dos grandes coronéis, ao transitarem para Catedral, acabavam sendo vítimas de insultos e chacotas por parte dos presidiários, que se escoravam nas pequenas grandes das janelas expostas. Por isso, pensou-se em um local mais “apropriado” e estratégico para a instalação da penitenciária. Ela deveria funcionar em uma rua isolada e incólume de movimentação de pessoas, ainda que fosse no centro da cidade.
Salienta-se que, com o passar dos anos e em virtude da expansão econômica, a rua se tornou um excelente ponto comercial. Diante disso, enquanto se efetivava a construção da Penitenciária Tenente Zeca Ruben, os presidiários do antigo quartel, foram transferidos, temporariamente para uma delegacia improvisada, onde hoje funcionam, concomitantemente, a Casa do Patrimônio e o Núcleo de Extensão da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). O antigo prédio do quartel foi utilizado como açougue municipal, sendo reformado anos depois para abrigar o Fórum de Justiça, mais tarde a sede da Prefeitura Municipal e atualmente a Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer e a Sala do Empreendedor.
O prédio da penitenciária é uma estrutura quadrangular (Fig. 5) composta por gabinete do delegado que concomitantemente funcionava como sala de audiências, sendo intitulada (Sala de Audiências Sec. Carlos Alberto de Melo Lobo). Ele possui um conjunto de banheiros ao lado da sala de espera que servia tanto os funcionários e outras pessoas, e outro conjunto ao lado da Cela 1, para os presidiários, sendo três para uso privado e um para banho. Possui um pátio e três celas de 4 x 3 m, aproximadamente. Salienta-se que a penitenciária, anos mais tarde de sua inauguração, passou por reformas. Em uma dessas foi construída mais uma cela de dimensão maior que as já existentes, perfazendo quatro celas.
A penitenciária recebeu a designação de Tenente Zeca Ruben para homenagear o personagem Zeca Ruben porque, segundo Tenente Moreira[4], era um homem de família rica e tradicional de São Raimundo Nonato. Diz-se que teve seu título de tenente comprado, possivelmente no Rio de Janeiro, enquadrando-se nas chamadas “patentes compradas”. Em conformidade com o Tenente Cordeiro, um dos primeiros delegados da aludida penitenciária da década de 1970, Tenente Zeca Ruben era um homem malfazejo, conservador e rígido. Ele matava e batia sem piedade. Faleceu atropelado por um trem, na cidade do Rio de Janeiro.
4. Informação obtida por Francisco Moreira Viera (Tenente Moreira), delegado da Penitenciária na década de 1990. (Entrevista realizada no dia 16 de setembro de 2014, em sua residência.) |
Em seus primórdios, a penitenciária foi administrada pelo Capitão Geraldo de Sousa Ganso, popularmente conhecido como “Capitão Ganso” que efetivava as prisões e tomava conta de outras diretrizes e questões. Ele atendia praticamente toda a região sudeste do Piauí, em virtude de vários municípios estarem sob a jurisdição de São Raimundo Nonato. Nesse período, a penitenciária recebia poucos presos, comportando dois ou três homens no máximo por cela. Isso se dava porque não havia tantos crimes e outros delitos, ou pelo menos as questões eram resolvidas de acordo com a justiça individual das pessoas, não as levando para discussão na delegacia. Além do mais, somente homens eram presos e estes ficavam trancafiados integralmente nas celas.
|
Figura 5 – Planta baixa da penitenciária; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
De acordo com o Tenente Cordeiro, os detentos não tomavam banho de sol, muito menos faziam atividades físicas ou de lazer. Eles recebiam alimentação levada por familiares. Tomavam um banho que geralmente acontecia ao meio dia, e após isso eram recolhidos para suas devidas celas. Como se tratava do período ditatorial, o tratamento dado aos presos era mais severo, seguindo metodologias de imposição do medo e castigo. Assim os detentos passavam a respeitar os militares.
O fato é que desde a sua construção (na ditadura militar) até o fim da sua vigência em outubro de 2007 (no período democrático), exatamente 40 anos, funcionou como delegacia e casa de milícias, para cumprir as operações básicas de penitenciária e unidade prisional. Foi ponto de resguardo de detentos em regime fechado ou semiaberto, prestação de queixas e reduto estratégico militar.
4. TEORIA E MÉTODOS DO TRABALHO DE CAMPO
Um dos elementos mais chamativos nos ambientes internos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben é a abundância de expressões gráficas e representações pictóricas, como grafites e murais em suas paredes, teto e outras superfícies. Grande parte destes grafites corresponde a temáticas variadas realizadas durante os anos 2000, embora certamente outras expressões do período ditatorial estejam presentes ainda que por baixo de camadas de tinta ou até mesmo cobertas por outras pinturas e grafismos.
A análise do grafite converteu-se em um tema crucial no campo dos estudos culturais, seja como representação comunicativa e estética ou como manifestação cultural e política. Ademais a partir dessas manifestações se puderam perceber regras conceituais coletivas e a compreensão das preferências próprias de cada grupo, por meio da observação em campo sobre as escolhas, seleções e mesmo através das categorizações aplicadas pelos detentos ao elaborar os grafismos rupestres para compor os painéis. As escolhas simbólicas dos presidiários, gravadas na memória coletiva, representam um tipo de comunicação difundida, conhecida e estabelecida coletivamente.
A realização do estudo sobre as expressões na penitenciária seguiu uma abordagem com enfoque sistemático voltado para uma perspectiva de compreensão das estruturas e da organização dos painéis rupestres, tendo como ferramenta teórica a base cognitiva das ações empregadas para tais representações. Por isso empregou-se uma estratégia de registro controlado e integral, com cobertura total dessas manifestações culturais mediante a aplicação de estratégias arqueológicas para o levantamento das evidências rupestres.
4.1. Escolha da Cela para a Investigação
Ao abordar de uma forma geral o estudo dos grafites da penitenciária, deparou-se a princípio com uma diversidade excepcional de manifestações culturais de intricados níveis de significação. Assim, diante da expressiva quantidade de registros encontrados, escolheu-se dentre as cinco celas existentes, a fixada ao lado do Gabinete do Delegado, que foi denominada de cela 2 (Fig. 6).
A cela 2 é um recinto quadricular de 4,02 m x 2,93m. Nela há cinco manchas gráficas, no teto, na parede norte, na parede sul, na parede leste e na parede oeste. A escolha desta única cela se deu pela quantidade expressiva e diversidade temática de registros gráficos. Ela pode ser a matriz para nortear os estudos das demais celas, uma vez que se almeja a ampliação desta pesquisa para interpretações arqueológicas futuras, principalmente no que concerne ao entendimento dos significados dos símbolos expressos. Então se realizou um levantamento fotográfico e gráfico sistemático dos grafites e outras expressões pictóricas nas paredes e no teto da cela em questão (Fig. 7).
Investigando este espaço percebeu-se que as manifestações gráficas codificadas são verdadeiros conjuntos que contém uma organização interna própria. Eles foram estruturados em virtude de uma simbologia visual, ou seja, de uma transmissão gráfica de pensamento, de uma mensagem, registrada materialmente. Trata-se de unidades figurativas que manifestam pensamentos, conceitos, mensagens e identidades. Os registros gráficos foram classificadas como produtos de diferentes códigos morais, estéticos e tecnológicos, de diferentes discursos ideológicos, religiosos, apelativos, de sexualidade, apologia ao crime, drogas e ostentação.
|
Figura 6 – Vista interna da cela 2; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 7 – Penitenciária Tenente Zeca Rúben em três dimensões; Autoria: Rosivânia Aquino (2015) |
Conforme Guedes (2014), esse processo fotográfico sistemático analítico cresce em importância na medida em que o pesquisador observa, de diferentes distâncias, traço por traço, como está constituído cada grafismo, cada unidade.
4.2. Etapas da Pesquisa na Cela 2
Realizou-se o trabalho de campo nos últimos meses de 2014 e no início de 2015. Inicialmente, prospectaram-se todos os espaços da penitenciária e, posteriormente concentrou-se na cela 2, com finalidade de angariar um inventário parcial dos grafites e das pinturas existentes no lugar, para depois analisá-las sob a ótica da Arqueologia Cognitiva e da Neuroarqueologia. Adotou-se nessa etapa uma metodologia arqueológica de resgate, inspirada na metodologia tradicional de levantamento de manifestações rupestres pré-coloniais.
Organizou-se o inventário parcial com base em manchas gráficas, como nas análises de grafite de Rodrigo Novarrete e Ana Maria López Y (2008) feito no Quartel San Carlos da cidade de Caracas. Estas manchas representam conjuntos significativos de temáticas expressas em unidades gráficas que se fazem como um dos objetivos de estudo da investigação. As manchas gráficas foram selecionadas dentro do espaço interno, e são representadas em cada suporte de uma cela, seja ele teto, parede orientada para norte, sul, leste ou oeste (Fig. 8).
|
Figura 8 – Organograma das atividades de campo; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
Conforme López Y. (2008), como recurso metodológico para a realização do inventário parcial, é imprescindível configurar os possíveis esquemas organizadores dos lugares de concentração e de produção dos grafites. Sendo assim, cada mancha gráfica evidencia temáticas expressas em grafites, desenhos e murais de palavras. Elas estão dispostas em diferentes suportes ou estruturas materiais como pisos, tetos e paredes que servem de base para o seu registro.
Realizou-se, então, todo o registro fotográfico dos grafites, tanto de cada uma das temáticas específicas, como de pequenos conjuntos de temáticas. Ainda que na maioria das unidades de significação, a ausência de um corpus coerente de temáticas tenha dificultado sua análise posterior e sua interpretação como conjunto, o agrupamento delas permitiu seu estudo com base na observação de semelhanças de atividades e de convivência do espaço utilizado na cela 2.
É fecundo assinalar que, por se tratar de estruturas não passiveis de apreensão fora da penitenciária, não móveis, não podendo transportar os elementos em estudo para análise detalhada em laboratório arqueológico. A compreensão da temática ou do conjunto de temáticas dependeu do contexto físico em que se encontravam.
Assinala-se que quase todos os suportes foram alterados estruturalmente, ou sofreram a superposição de várias camadas de tinta, o que inviabilizou a leitura prévia de algumas manifestações. Ademais, a penitenciária está desativada há mais de sete anos. Ao longo desse período, sofreu danos de cunho climatológico, erosivo, como também agressões antrópicas, resultando assim em paredes derrubadas, telhado desmoronando, infiltrações, acondicionamento de pragas, e outras agressões. Neste sentido, do ponto de vista meramente científico, consideraram-se os desenhos e escritos mais recentes e com melhor visibilidade.
Na última etapa de campo, procedeu-se o registro sistemático de cada temática passível de identificação. Para isso elaborou-se uma ficha de classificação, baseada no modelo de Rodrigo Novarrete e Ana Maria López Y (2008). As fichas contêm: localização da temática, descrição formal ou transcrição, técnica de manufatura, data de realização, autoria e estado de conservação (Fig. 9 e 10).
|
Figura 9 – Manchas gráficas 1 (teto), 2 (parede norte), 3 (parede oeste) e 5 (parede leste);
Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 10 – Mancha gráfica 4 (parede sul) e continuação da unidade 3 (parede oeste);
Foto: Rosivânia Aquino (2015) |
As unidades que contêm suas temáticas, descritas ou transcritas, enquadraram-se como: apologia ao crime, cronologia, passatempo, recreativo, meio de transporte, frases, ostentação, religiosidade, apelo, sexualidade e simbolismo. Com o parâmetro da técnica identificaram-se: com lápis, caneta azul, preta ou verde, tinta, raspado e feito ao fogo. Quanto ao complemento, identificaram-se: com data e/ou autoria. Em seguida descreveu-se o estado de conservação: ótimo, bom, ruim.
Adotou-se este tipo de registro por se tratar de um importante prelúdio com caráter efêmero, pois as manifestações estavam expostas às agressões climatológicas e sociais. Além disso, com as classificações adotadas na ficha, pode-se realizar mais facilmente a etapa seguinte de análise, segregando os temas de acordo com as metodologias adotadas pela Arqueologia Cognitiva, com ênfase na linha analítica Cognitiva-Processual e a Neuroarqueologia. Cada unidade interpretada direciona-se para escolhas dos presidiários. As escolhas são avaliadas muitas das vezes por uma percepção de seu próprio mundo.
Neste sentido, todas as unidades são categorias cognitivas. Nelas se tenta compreender a materialização de pensamentos elaborados e, assim, entender que aquilo que está registrado nas paredes e no teto da cela, é fruto de um reflexo, ainda que indireto, das próprias estruturas de pensamento dos detentos, diversificadas estruturalmente. Traçam-se, ainda, semelhanças e diferenças cronológicas, características formais e contextos de produção que possivelmente tenham relevância para a investigação.
Conforme Guedes (2014), ao se trabalhar com o pressuposto de que os dispositivos rupestres possuem um tipo de comunicação que pode ser observada entre os diversos grafismos, procura-se a relação existente entre as unidades gráficas. Assim elas exigem uma organização interna para que seja inteligível portadora de sentidos compreensíveis para aqueles que possuem o código de leitura. São as relações de composição e associação gráfica que se tentam entender ao analisar um painel rupestre.
Deste modo, o que se vê pintado e gravado nas paredes e no teto é um reflexo de um pensamento estruturado. Propõe-se que as relações entre as unidades gráficas são organizadas estruturalmente e, desta forma, portam sentido. Percebe-se essa organização por meio de uma análise interna e podem-se compreender como os detentos formaram um tipo de comunicação por imagens.
4.3. Como os Presos se Comunicam
Ao trabalhar com corpus de que não se podem conhecer a priori os significados, procurou-se estudar os registros gráficos pós-coloniais como um sistema conscientemente estruturado, composto de ligações e organizações imbuídas de sentidos. Procurou-se estabelecer critérios de leitura e, portanto, as análises realizadas tiveram a finalidade de compreensão da maneira de como se criou o sentido.
As investigações realizadas na cela 2 permitiram estabelecer pelo menos dez categorias de classificação das mensagens de grafites e das pinturas, distribuídas em cerca de 65 motivos. Acredita-se que a variabilidade de temas, de reflexões e figurações representa um mundo de tensões, convergências, discrepâncias, diferentes visões de mundo compartilhadas pelos indivíduos que estiveram reunidos no espaço em estudo (Fig. 11 a 13).
|
Figura 11 – Contagem de localização; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 12- Registros gráficos da mancha gráfica 1 (teto); Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 13- Registros gráficos da mancha gráfica 4 (parede sul); Foto: Rosivânia Aquino (2015) |
|
Figura 14- Registros gráficos da mancha gráfica 5 (parede oeste);
Foto: Rosivânia Aquino (2015) |
Analisando os registros gráficos da cela 2 percebeu-se que as manchas gráficas (teto, paredes orientadas para norte, sul, leste e oeste) estão sustentadas por uma elaboração mental e uma estruturação anterior ao ato de pintar, desenhar ou gravar o suporte. Está-se assim diante de uma criação mental materializada nas paredes e no teto da cela e por isso a leitura feita dos dispositivos parietais foi ordenada por essa exteriorização de um pensamento manifestado pelos presidiários.
Em outras palavras, na construção dos parâmetros de leitura, partiu-se de uma ideia construtiva no âmbito imaterial para atingir o âmbito material, advindo do interior (mente) para o exterior (suporte parietal). Desta maneira utilizaram-se os pressupostos da Arqueologia Cognitiva na compreensão: do pensamento, da intensão, percepção, organização, representação, discurso e codificação dos painéis. A Arqueologia Cognitiva trabalha com o princípio de que é possível compreender alguns processos imateriais responsáveis pela criação de determinado vestígio material.
Existe dessa forma uma cadeia de processos ligando esses dois estágios, do imaterial ao material. Essa cadeia inicia-se com a elaboração interna de um conceito e a criação de formas mentais simbólicas de materiais e ações necessárias para a realização de cada unidade gráfica, concepção mental sobre a escolha do suporte, elaboração dos traços, materialização das seleções mentais no suporte e materialização do pensamento. Assim os traços expostos nas paredes e no teto indicam mais que uma habilidade técnica para desenhar. Eles apontam para as “escolhas” e para a “percepção”. Por meio das estruturas, relações e sintaxes que apresentam nas variadas temáticas de sexualidade, apologia às drogas, ao crime e muitas outras, percebem-se as próprias percepções de mundo que os presidiários tinham antes de estarem encarcerados e como eles traduziram essa percepção da realidade e nas disposições das representações.
4.3.1. As Unidades Gráficas
Conforme Guedes (2014), na construção de um painel, o todo faz sentido. É no conjunto, ou melhor, na leitura total que se pode compreender a construção simbólica do dispositivo rupestre. Contudo para se compreender o todo, é necessário distinguir as partes. A mínima parte que contém em si uma coerência construtiva e possui um peso semântico é a unidade gráfica. Ela corresponde a um termo, ou seja, é uma unidade de conceito. É na conjunção, na associação das diversas unidades gráficas, ou mesmo na falta de associação que se constrói um painel rupestre.
4.3.2. Interpretação das Temáticas com critérios das Ciências Cognitivas
Em algumas unidades, a seleção para a composição dos painéis da cela 2 obedeceu a escolhas premeditadas. Em outras, as escolhas foram arbitrárias. Cada espaço das unidades foi intensamente utilizado para a realização dos registros com o seu preenchimento parcial, ou mesmo total (Fig. 15).
|
Figura 15 – Temáticas das unidades gráficas; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
4.3.2.1. Apelo Religioso
Um dos temas que está entre os de maior recorrência dentro da cela 2 é o que se denominou de apelo religioso. Esta temática, presente principalmente na mancha gráfica 1 / Suporte A / Teto, mas que também se observa na mancha gráfica 3 / Suporte C / Parede Oeste, diz respeito a elementos de cunho religioso, ligados ao discurso apelativo, além de outras manifestações parietais relativas a passagens e iconografias cristãs. Observa-se que praticamente 70% dos murais escritos no teto fazem referência a homílias e preces religiosas. Eles têm a figura divina de Deus e Jesus Cristo como mediadores para as graças almejadas (Fig. 16).
|
Figura 16 – Temática de apelo religioso; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
De acordo com Foucault (1999), o ambiente carcerário é um recinto da lentidão do suplício, peripécias e sofrimento do condenado. Na medida em que o detento é pressionado pela dor e pela agonia, ele passa a ser visto como o teatro do inferno, pois ele está sendo julgado pela justiça dos homens como também pela justiça de Deus. Neste sentido, a punição terrestre é considerada como dedução da pena divina futura. É neste ambiente que lhe vem o arrependimento, muitas vezes tardio, fazendo com que, diante de tantas discrepâncias sofridas, suplique a Deus misericórdia, piedade, compaixão e indulgência.
Foucault (1999) ainda observa que o sofrimento pode significar a verdade do crime ou o erro dos juízes, a bondade ou a maldade do criminoso, a consciência ou a divergência entre o julgamento dos homens e o de Deus. Leem-se aí o crime e a inocência, o passado e o futuro, este mundo e o eterno. O condenado tenta expor em cada unidade gráfica, um grito, uma agonia e a própria vida que não quer mais encarcerada. Tudo isso vale por um sinal. É nos sentimentos mais cristãos e nas demonstrações exteriores de religião que se observa possivelmente o mais sincero arrependimento. G. Ferreis (1850 apud Foucault 1999, p. 363) argumenta que:
Sozinho em sua cela o detento está entregue a si mesmo; no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca, ele desce à sua consciência, interroga-a e sente despertar em si o sentimento moral que nunca perece inteiramente no coração do homem.
Não é, portanto, um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da punição que age sobre o detento, mas o próprio trabalho da consciência. Em Hill (1820 apud Foucault 1999, p. 268), “os muros são a punição do crime, a cela põe o detento em presença de si mesmo; ele é forçado a ouvir a própria consciência”. Na cela fechada, sepulcro provisório, facilmente cresce o mito da ressureição (Fig. 17). Hill (1820 apud Foucault 1999, p. 269), ainda advoga:
Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro no qual, em lugar dos vermes, os remorsos e o desespero avançam em vossa direção para roer-vos e fazer de vossa existência um inferno antecipado. Mas... aquilo que para o prisioneiro sem religião não passa de uma tumba, um ossário repulsivo, torna-se, para o detento sinceramente cristão, o próprio berço da imortalidade bem-aventurada.
Nos murais do teto, percebe-se que a utilização do espaço parietal dessa mancha gráfica foi estruturada intencionalmente, obedecendo a processos cognitivos processuais de escolhas. Os detentos, dotados de uma consciência e almejando o perdão divino, suplicam por piedade e a saída para livrar do sofrimento em que se encontravam e direcionam suas orações para Deus e Jesus Cristo. Desta maneira, para a fé cristã, onde está à morada de Deus se não nos céus? Ao orar, o ato de erguer a cabeça para o alto, para os céus, nada mais é que uma tentativa de estabelecer uma relação proximal com Aquele com quem se quer comunicar. No ambiente interno da cela em questão, os presidiários, na prática desse ato, não conseguiam obviamente enxergar os céus, pois se encontravam diante de uma estrutura de concreto e de gesso que impedia essa visibilidade.
A criação dos murais representando súplicas e explanação da fé cristã no teto e não em outros suportes como as paredes, por exemplo, se deu pelo estabelecimento de uma comunicação do consciente, do imaterial (mente), aquilo que estava no íntimo de quem escreveu, para o material (suporte/ teto). Observa-se que o detento (emissor), escreveu suas súplicas e pedidos (mensagem), expressos no teto (canal) para chegar a Deus e Jesus Cristo (receptores) da mensagem.
Ressalta-se que em outro suporte da Cela, na mancha gráfica 3, suporte C, parede oeste, também se encontraram elementos de cunho religioso, ainda que em quantidade bastante reduzida. São passagens bíblicas de salmos e temática figurativa de Jesus Cristo, de 65 x 43 cm, que remetem ao universo cristão, possivelmente católico. Praticamente todas essas manifestações textuais expressam um pedido às figuras de Deus e Jesus Cristo, o que leva a propor que a religião se converte em um recurso de emancipação e esperança para sublimar a reclusão permanente. Alguns dos grafites registrados tratam ainda do amor a Deus e trazem pedidos de proteção a Deus e a Jesus Cristo (Fig. 18).
|
Figura 17 - Projeto de penitenciária. Em sua cela, um detento reza diante da torre central de vigilância; Fonte: N. Harou-Romain (1840, p. 222).
|
|
Figura 18 – Pedido de proteção a Deus; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
Não se identificou assinatura alguma ao lado desses registros que poderia levar à sua autoria. Ainda que ao lado da representação de Jesus Cristo, estivesse a seguinte inscrição “Rodolfo Jesus te amo sauvame Senhor sauvame”, os materiais utilizados (o primeiro desenhado a tinta e lápis e a inscrição, feita a caneta azul) sugerem terem sido feitos em momentos distintos e por autores diferentes (Fig. 19).
Avaliando a influência do suporte na concepção desses painéis, não apenas os registros são materiais de inferências sobre o processo mental, mas também a seleção do suporte. Dessa forma, as especificidades intrínsecas do teto sugerem uma compreensão de organização do suporte, por conseguinte da semântica, ou seja, a construção do sentido específico da mancha gráfica.
No ponto de vista dos processos cognitivos isso implica no modo de percepção e de escolhas dos detentos, em como o suporte foi utilizado para construção de uma mensagem e reprodução do conhecimento. Esse tipo de observação permite perceber mensagens bastante particulares e para além da compreensão do registro por si só. Nota-se uma concepção das mensagens estruturadas no suporte, onde se esboça a promessa do perdão (Fig. 20).
|
Figura 19 – Inscrição e representação de Jesus Cristo; Fotos: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 20 – Motivos religiosos; Fonte: Rosivânia Aquino (2015)
|
4.3.2.2. Sexualidade
Dentro da Cela 2 há também manifestações relacionadas com a mulher e a sexualidade, dentro de um teor erótico onde possivelmente os réus não só sublimavam sua excitação sexual no momento em que faziam os desenhos eróticos, mas provavelmente sentiam um prazer ainda maior ao constatar que suas pinturas e grafites eram apreciados por outros presos. Conforme Navarrete (2004) é desta maneira que a sublimação se converte num recurso de poder sobre o âmbito simbólico e físico da cela, já que o indivíduo não apenas ocupa o recinto, mas o possui sexualmente.
Além disso, percebe-se uma espécie de objetivação do amor platônico, ou atração pelas mulheres desenhadas de acordo com o apelo sexual, usualmente orientado para uma perspectiva heterossexual. Assim, exuberantes desenhos de mulheres nuas em posição sexual são reproduzidos de forma verossímil, evidenciando certo cuidado ao retratar o corpo feminino. Alguns desenhos acompanham frases carregadas de erotismo e de fantasia – tal como “é tudo q elas precisão para nos levarão ao delirio” – que está localizada justamente na parte inferior do desenho de duas mulheres nuas em posição sexual (Fig. 21).
|
Figura 21 – Desenhos de mulher nua, com frase de erotismo; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
Esta temática se faz presente em duas manchas gráficas opostas espacialmente, na parede B (norte) e na parede D (sul). Fato curioso é que ambos os grafismos estão localizados de forma semelhante, a aproximadamente 50 cm do chão. Percebe-se que, diante da notória particularidade da temática, esses suportes foram estrategicamente escolhidos. A intenção da escolha está possivelmente relacionada com o diálogo, local / temática. Rente a essas paredes, os detentos elaboravam camas improvisadas feitas de papelão, colchões e tecidos. Assim, eles tinham plena visão desses desenhos eróticos ao se deitarem, e quiçá, em consonância com arqueologia cognitiva processual, reconhecer na memória estados passados das suas vivências sexuais e mesmo imaginar no “olho da mente”, possíveis estados sexuais futuros, ao saírem da prisão (Fig. 22).
|
Figura 22 – Sexualidade; Autoria: Rosivânia Aquino (2015)
|
São esses dados que concedem a esses espaços uma importância no que tange às expressões cognitivas dos grupos responsáveis por sua criação.
4.3.2.3. Apologia ao Crime
A temática da apologia ao crime na cela 2 não está entre as temáticas de maior incidência. Todavia, resolveu-se interpretá-la por se tratar de um tema bastante recorrente nas demais celas da penitenciária e certamente frequente nos mais variados sistemas de repressão nacionais e em nível mundial.
Os grafismos de apologia ao crime se encontram em duas manchas gráficas opostas, assim como as de cunho sexual, na parede B (norte) e na parede D (sul). São desenhos de armas de calibre 38 e rifles. Na parede B está evidenciada a figura de uma arma de calibre 38 em estado de conservação ruim, feito possivelmente com caneta azul. A representação foi feita logo abaixo do desenho de duas mulheres em poses sexuais (Fig. 23).
Na parede D (sul), por sua vez, exuberantes grafismos com representação de armas de calibre 38 entrelaçados e um rifle são destaques nesta mancha gráfica, não somente por suas dimensões 73 x 80 cm, mas por serem tecnicamente bem elaborados (Fig. 24). Acompanhados de inscrições “tatuagem proficional”, “Caracol-PI 27-06-2007”, eles encontram-se dispostos ao lado de duas mulheres em posições sexuais na parede B (norte).
|
Figura 23 – Representação de uma arma de calibre 38; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
|
Figura 24 – Representação de armas e outras temáticas; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
Do ponto de vista parietal, este suporte fornece uma área livre considerável, ademais pela pouca quantidade de grafismos presentes nesta mancha gráfica. Fornece uma visibilidade principal para as armas. Propõe-se que tais manifestações concebem certo fascínio pelos objetos representados, ou mesmo a violência que diz respeito tanto a experiências cotidianas vivenciadas no interior do cárcere quanto àquelas recorrentes fora dos muros da penitenciária.
Conforme Navarrete (2008) representações que sugerem um teor de violência, ou mesmo de apologia ao crime, ressaltam a necessidade que os detentos têm de se destacar dentro de um grupo e provocar, simultaneamente, o temor no resto da comunidade carcerária. Elas configuram um espaço de identidade a partir da violência. A representação das armas de calibre 38 e do rifle revela a ânsia de reconhecimento e projeção, de sair do anonimato pelo registro de que o autor da mensagem foi preso neste lugar por sua “má conduta” ou “seu caráter violento”.
Navarrete (2008) ressalta também que nestes espaços, por meio dessas representações, refletem a chamada lei da selva carcerária segundo a qual os mais fortes, duros e resistentes sobrevivem, prevalecem e são respeitados dentro da comunidade prisional. Ocasionalmente, considera-se que a escolha para a organização dos grafismos da parede B (norte) e D (sul), está relacionada com um signo de identidade, uma vez que os registros denotam uma atitude de rivalidade, de destaque dentro do grupo. Sua representação partiu do imaterial para o material, já que essas armas podem ter sido objetos manuseados pelos detentos fora da prisão, ou mesmo objetos que eles gostariam de ter em liberdade.
4.3.2.4. Passatempo ou Recreativo
O elemento evasivo comum ao imaginário destas representações parietais é o que se denominou de passatempo ou recreativo, ligando até mesmo ao humor. Em consonância com López Y (2008), o humor, quer seja em termos de ironia ou de subversão da ordem lógica das condições de existência, articula-se ludicamente com a realidade e a transforma em nível simbólico, na busca de uma saída imaginária. Grafites e pinturas de rostos femininos, homem de chapéu, personagens infantis sugerem que, no contexto carcerário da cela em estudo, estas manifestações pictóricas ajudariam os presos a neutralizarem uma série de circunstâncias que de outra forma seriam muito destrutivas (Fig. 25).
|
Figura 25 – Temáticas de passatempo ou de recreação; Fotos: Rosivânia Aquino (2015).
|
Considera-se que nesta temática os processos cognitivos de percepção e escolha dos suportes para a representação dos grafismos seguiu uma linha arbitrária ou mesmo aleatória, visto a sobreposição de elementos e variedade de desenhos que partem do imaginário para o real.
4.3.2.5. Cronologia
Observa-se também que a noção de tempo converte-se em um referente centro do discurso. Alguns temas, principalmente gravuras, presentes nos suportes da Cela 2, são indicadores cronológicos dos dias transcorridos na prisão. Datas, traços e riscos verticais devem significar a contabilidade, ou seja, o dia a dia da pena imposta em cada caso (Fig. 26). Foram encontrados três representações desta temática, dois deles na parede B (norte), e um na parede C (oeste).
|
Figura 26 – Temática cronológica; Foto: Rosivânia Aquino (2015)
|
Observa-se que, nas temáticas representadas, o processo cognitivo dos detentos parte basicamente de cinco categorias: a percepção, a sensação, a interpretação, a significação ou categorização e por último, não menos importante, a apropriação.
A percepção, enquanto construção dos conhecimentos singulares ocorre em dois momentos: na sensação que trata da captação de informações por meio dos mecanismos sensoriais do corpo, e a interpretação que trata da capacidade mental de organizar as informações recebidas no processo sensorial e permite os presidiários orientarem o seu comportamento. A significação ou categorização, enquanto construção dos conhecimentos plurais permite o desencadear do processo de estabelecimento de valores/significados para as informações interpretadas. A apropriação faz paralelos aos valores atribuídos aos objetos (grafismos) e ao ambiente (paredes e teto). Estes podem ser de forma seletiva, tomados como pertencentes ao indivíduo ou ao seu grupo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É profícuo aclarar que a Arqueologia Cognitiva e a Neuroarqueologia são ciências em desenvolvimento. Seus estudos, não só no Brasil, mas também em nível mundial ainda são escassos. Todavia existem trabalhos que empregaram parâmetros dessas ciências e obtiveram resultados interessantes e vantajosos, como é o caso do trabalho intitulado “A Semântica dos signos na Arte Rupestre: Estruturas da Cognição”, tese de doutorado de Carolina Machado Guedes (2014). Ela empregou as ciências cognitivas na interpretação de uma série de sítios rupestres na região de Minas Gerais.
Nesse diapasão, pode-se afirmar que o locus desta pesquisa, A Penitenciária Tenente Zeca Rúben, está com abundantes representações gráficas e pictóricas. Em todas as celas e outros suportes, os presidiários, que por ali passaram, deixaram a sua marca em forma de desenhos, gravuras, pinturas ou outras expressões simbólicas. No presente trabalho escolheu-se a cela 2, mas pretende-se alargar a pesquisa para observação e estudo das demais celas, fazendo relações qualitativas e quantitativas, identificando as escolhas, estruturas de organização dos discursos e os pensamentos organizados dos detentos para gerar pistas para compreensão e mesmo interpretação dos suportes por meio da Arqueologia Cognitiva Processual e Interpretativa.
A interpretação dos grafismos da Cela 2 se decompôs em duas partes distintas, porém complementares que se fundamentaram nas referências teóricas e metodológicas da Arqueologia Cognitiva e da Neuroarqueologia. Isso acarretou num estudo sistemático sobre a elaboração dos dispositivos para a compreensão das estruturas, da organização interna e disposição em relação ao entorno e o próprio suporte, como também as composições simbólicas particulares e individualizadas permanentes no âmbito da cela.
Ao se trabalhar com o pressuposto de que os dispositivos parietais da cela 2 contêm um tipo de comunicação consciente e simbolicamente estruturada, compreende-se que as unidades gráficas, os desenhos, as pinturas e as gravuras apresentam relações espacialmente significativas. Assim uma comunicação articulada exige uma organização interna, por parte dos detentos, para que se faça inteligível, portadora de sentidos, compreensíveis por aqueles que possuem os códigos de leitura. Logo aquilo que foi gravado, desenhado e pintado nas paredes deste recinto prisional se faz testemunho do processo mental dos presidiários, dado por meio da ligação ou mesmo união de mente e cultura.
Em relação à variedade de temáticas, de maneira geral, pode-se compreender que além da notória particularidade, existe a preferência por locais distintos, como os de fácil visualização, bem como os locais difíceis de visualizar. As paredes e o teto são suportes que acabam sendo parte integrante da mensagem, uma vez que eles ganham peso no que se refere à construção do significado. Sua topografia se mostra como determinante nas escolhas dos autores. As ciências cognitivas se fizeram de um importante prelúdio na compreensão sobre o trabalho cognitivo empregado na elaboração destas temáticas e nas mensagens de alto teor simbólico. Fica claro que um vestígio material indica muito além de suas características formais. Ele fica imbuído de uma carga de ações, escolhas, pensamentos e tradições.
As interpretações partiram da coleta de dados em campo, nas quais se percebeu a constante utilização para criação dos grafismos que adquiriram pesos semânticos distintos nas diferentes unidades e suportes. Trabalhou-se com três eixos (tipológico, temático e organizacional). Cada unidade é única, e nas propostas acentuadas convergiu-se, em primeira instância, para interpretar unidade por unidade de forma particular e distinta para a compreensão de todos os painéis gráficos da cela.
O estudo da cela 2 permitiu apontamentos interessantes tanto no que tange a organização de um pensamento, ou de uma forma de expressão organizada, quanto para as escolhas dos detentos que evidenciam os processos cognitivos responsáveis pelas manifestações de cada unidade, formando identidades específicas. É uma troca incessante entre uma estrutura básica dos processos neurológicos do cérebro humano estruturando por um lado, a natureza inerente das manifestações simbólicas humanas como um todo, e por outro a plasticidade notável da constituição da mente. Uma mente que se encontra sempre em movimento e transformação evidencia-se na diversidade tipológica de cada unidade gráfica.
—¿Preguntas,
comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com—
Cómo citar este artículo:
de Castro Aquino, Rosivânia y Kestering, Celito. Rabiscando celas: Arqueologia Cognitiva aplicada na interpretação dos registros gráficos da Penitenciária Tenente Zeca Rúben em São Raimundo Nonato - PI. En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/rabiscandocelas.html
2017
REFERÊNCIAS
ANDRADE. T.L. Arqueologia Histórica: algumas considerações teóricas. Clio,Série Arqueológica, v.5, p. 87-99, 1989.
ARRIZABALAGA, A.R. Arqueologia Cognitiva: Origen del simbolismo humano. Madrid: Arco Libros, 2005.
BAHN, P. Dating the First American. New Scientist 131 (July 20) 1778:26-28, 1991.
CANCLINI, N.G. Culturas Híbridas. Estrategias para entrar y sair de la modernidade. Buenos Aires: Paidós, 2001.
CARVALHO Filho, Luiz Francisco. A prisão. São Paulo: Publifolha, 2002 .p. 21.
CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
FEITOSA, L. C. Amor e Sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
FUNARI, P. P. A. A vida cotidiana na Roma Antiga. São Paulo: Annablume, 2003.
GANASCIA, J.G. As ciências cognitivas. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
GARDENFORS, P. Comment Homo est Devenu Sapiens. Sur L’evolution de la Pensée. Édtions Sciences Humaines, 2007.
GARRAFONI, R. Bandidos e salteadores na Roma Antiga. São Paulo: Annablume, 2002.
GASPAR, M. A arte rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
GUEDES, Carolina Machado. A semântica dos signos na arte rupestre: estruturas da cognição. 2014. 374f. Tese (Doutorado em Arqueologia)- Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo, 2014.
GUIDON, N. Tradições Rupestres da área arqueológica de São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil. CLIO- Série Arqueológica 5:5-10, 1989.
GUIDON, N. Arte Rupestre no Piauí. In: SCHMITZ, P.I.; BARBOSA, A.S.; RIBEIRO, M.B. (ed.), 1992. Temas de Arqueologia Brasileira 4- Arte Rupestre. Anuário de Divulgação Científica. N. 8. Goiânia: IGPA, 1978/ 79/80. Pp. 15-57. IBGE. Manual Técnico da Vegetação Brasileira. Rio de Janeiro: IBGE.
HODDER, I. The Problem: in Reading the Past. Corrent Appoaches to Interpetation in Archaeology. United Kingdom. Cambridge University Press, 1999.
______. Pos Processual archaeology. Reading the past. 2nd Ed. UK, Cambridge University Press, 1999.
HORTA, A. I. Pinturas rupestres urbanas: uma etnoarqueologia das pichações em Belo Horizonte. Revista de Arqueologia, v. 10, p. 143-161, 1997.
INFORMAE. A São Remo grafita o MAE. INFORMAE, ano 1, n. 2, 2011, p. 8 LEWIS- WILLIAMS, D; DOWSON, T.A. The signs of all times: entopic phenomena in Upper Palaeolithic Art. Current Anthropology, volume 29, number 2, april, pp. 201-245, 1988.
LIEBMANN, M. Archaeology and the postcolonial critique. Lanham, Ed. Altamira Press, 2008.
LOPEZ A.M y NAVARRETE.R. Rabiscando atrás das grades: grafite e imaginário político-simbólico no Quatel San Carlos. Em FUNARI. P.P.A e ZARANKIN.A- Arqueologia da repressão e da resistência América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980)/ Organização de Pedro Paulo A. Funari, André Zarankin e José Alberioni dos Reis. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
MALAFOURIS, L. The cognitive basis of material engagement: where brain, body and culture conflate, in: Rethinking Materiality: The engagement of mind with the material worlds, eds. E. DeMarris, C. Gosden, and C. Refrew. Cambridge, UK: MCDonald Institute, 2004, pp. 53-62. Baixado da Internet em 12/02/2015, http://cogprints.org/4629/2/05Malafouris_PM.pdf.
MARTIN, G. Pré-História do Brasil. 5.ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008.
MARTIN, Gabriela & GÜIDON, Niède. A onça e as orantes: uma revisão das classificações tradicionais dos registros rupestres do NE do Brasil. Clio - Arqueológica. RecifePernambuco: Universidade Federal de Pernambuco. v.25, n.1, pp.11-30, 2010.
MITHEN, S. From domain specific to generalize intelligence: a cognitive interpretation of the Middle/ Upper Palaeolithic transicion. In: RENFREW, C. and
ZUBROW, E.B. – The ancient mind: elements of cognitve archaeology, Cambridge, Cambridge University Press . 1994, 29-39p.
_________. A pré-história da Mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. Tradução Laura Cardellini Barbosa de Oliveira; revisão técnica Max Blum Ratis e Silva. São Paulo: UNESP, 2002.
MOORE-GILBERT, B. Postcolonial theor: contexts, practices, politics. London: Verso, 2000.
NAVARRETE, R. Graffiti XXX: visones, imágenes y representaciones sexuales y de género em los baños públicos de la UCV. Trabalho apresentado durante as II Jornadas Universitárias sobre diversidade sexual “Gênero y Poder”. Caracas: Universidade Central de Venezuela, 2004.
PEREIRA, Julio Cesar Rodrigues. A fórmula do mundo segundo Karl Popper. 206f. Tese (Doutorado em filosofia)- Faculdade de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2009.
PESSIS, A. M e GUIDON, N. 2000. Registro Rupestre e caracterização das etnias pré-históricas. In: VIDAL, Lux (org.). Grafismos indígenas: estudos em antropologia étnica. 2 ed. São Paulo. Studio Nobel; Fapesp; Edusp. Pp. 19-33, 2000.
PROUS, A. Exemplo de Análises Rupestres Pontuais. Arquivos do Museu de História Natural. Belo Horizonte: UFMG, 10. Pp. 196-22, 1985.
PROUS, A. A arte pré-histórica do Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, Pichação & Cia. São Paulo, Ed: Annablume, 2007.
RENFREW, C. Mind and Matter: cognitive archaeology and external symbolic storage. In. C. RENFREW and C. SCARRE, Cognition and material culture: the archaeology of simbolic storage. McDonald Institute for Archaeological Research, 1-6, 1998.
RENFREW, C. et. Alii. What is Cognitive Archaeology? Viewpoint. Cambridge Archaeological Jounal 3:2. Pp. 247-270, 1993.
RENFREW, C. and SCARRE, C (eds.). Cognition and materia culture: the Archaeology of simbolic storage. UK. University of McDonald Institute for Archaeological Research
RENFREW, C. FRITH, C. And MALAFOURIS, L. Introduction. In: ______ (ed)s. The sapiente Mind: Archaeology meets neuroscience. New York: Oxford University Press, 1994.
RENFREW, C. and ZUBROW, E.B. The ancient mind: elements of cognitive archaeology, Cambridge, Cambridge University Press. 29-39, 1994.
SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940.2.ed. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006.p.185.
SEGAL, E.M. Archaeology and cognitive Science. In: RENFREW, C. and ZUBROW, E.B.W. (eds.). The ancient mind: elements of cognitive archaeology. Cambridge, Cambridge University Press.pp.22-28, 1994.
SILVA TELLEZ. A. Sobre el graffiti: Una ciudad imaginada. Graffiti, expressión urbana. Boletín Cultural y Bibliográfico. Bogodá, ed: Universidad Nacional de Colombia, n.12, vol. Xxxiv, pp. 157-61, 1987.
VIALOU, D. A arte rupestre e a Paisagem da Cidade de Pedra. In: VILHENA
VIALOU, A. (org) – Pré-História do Mato Grosso. V. 2, Cidade de Pedra. São Paulo, Ed USP. Pp51, 2006.
ZARANKIN, A.; NIRO,C. A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros Clandestinos de detenção da ditadura militar argentina (1976-1983). FUNARI, P.P.A.; ZARANKIN, A.; REIS. J. A. (org.) Arqueologia da Repressão e da Resistência na América Latina. São Paulo, Ed. Annablume/ Fapesp, 2008.
ZUBROW, E.B.W. Cognitive archaeology reconsiderad. IN: RENFREW, C. and ZUBROW, E.B.W. (eds). The ancient mind: elements of cognitive archaeology. Cambridge, Cambridge University Press. Pp. 187-190, 1994.
Los derechos del material aquí
publicado pertenecen al autor; puede ser reproducido citando la fuente y con el respectivo permiso
de cada autor • Rupestreweb no asume la responsabilidad por la autoría del texto e imágenes, citación de fuentes, referencias o lo expresado por el autor. |
©2017 (Autores) Rosivânia de Castro Aquino y Celito Kestering
©2000-2017 (Editor) Rupestreweb
|