RESUMO. Este trabalho tem o objetivo de
reconhecer a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho
das Traíras, no Município de Sento Sé – BA, para contribuir na
identificação das fronteiras da Subtradição Sobradinho. Caracteriza-se a
Subtradição Sobradinho como uma classe de pinturas rupestres realizadas por
grupos pré-históricos que ocuparam o Vale do Rio São Francisco, desde o final
do Pleistoceno até o Holoceno Superior. Define-se a Subtradição Sobradinho como
o conjunto de pinturas rupestres cuja temática dominante é representada com
traços contínuos, em diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou
da esquerda para a direita e vice-versa, quando verticais, realizado em
suportes da Chapada Diamantina, Formação Tombador. No Boqueirão do Riacho das
Traíras, constatou-se que existem onze sítios arqueológicos com painéis bastante
deteriorados de pintura rupestre com temática dominante correspondente às
características da Subtradição Sobradinho. Todos os painéis de pintura rupestre
desse boqueirão foram, porém, realizados em suportes de um veio de quartzo intrusivo
no Complexo Rio Salitre, Unidade Sobradinho. Sugere-se a realização de
pesquisas similares em outras feições de relevo da Área Arqueológica de
Sobradinho para definir a área de abrangência e as fronteiras dessa Subtradição.
Palavras - Chave: Pintura rupestre. Subtradição Sobradinho. Temática dominante. Boqueirão do
Riacho das Traíras. Sento Sé - BA.
ABSTRACT . This work aims to recognize the
dominant theme in the paintings of the Stream of Boqueirão Traíras to help
identify the boundaries of Sobradinho Sub-tradition. The Sobradinho Sub-tradition
was characterized as a class of paintings made by prehistoric groups who
occupied the San Francisco River Valley since the late Pleistocene to Holocene
Superior. The Sobradinho Sub-tradition was defined as the set of paintings
whose dominant theme is represented with continuous lines, diagonally upward
and downward, when horizontal, or left to right and vice versa, when vertical,
held in support of Chapada Diamantina.
Tombador Formation. In the Boqueirão do
Riacho das Traíras, located in the municipality of Sento Sé - BA, it was found eleven archaeological sites with very
damaged panels of rock paintings with themes corresponding to the dominant
characteristics of Sobradinho Sub-tradition. The panels of rock paintings were
made in quartz veins of Salitre River
Complex, Unit Sobradinho. It is
suggested to carry out similar surveys in adjacent faces of relief in the same
geological unit to investigate the area involved and the boundaries of Sobradinho
Sub-tradition.
Key words: Rock pictures. Sobradinho Sub-tradition. Dominant Thematic.Boqueirão do Riacho das Traíras. Sento
Sé – BA.
1. Introdução
A Arqueologia atua no estudo, resgate
e conservação de bens arqueológicos. Contribui para a valorização do patrimônio
de diferentes culturas. Os bens arqueológicos, aos serem identificados e
estudados, possibilitam uma relação amistosa com a memória.
No universo vestigial que a
Arqueologia tem a responsabilidade de estudar e preservar estão as pinturas
rupestres. Elas são importantes para o reconhecimento da identidade de grupos
pré-históricos. Para isso tem-se que estudá-las com rigor científico. Somente a
partir da década de 1960, começou-se a sistematizar o estudo das pinturas
rupestres tanto americanas quanto brasileiras. Percebeu-se a variedade de
informações que as mesmas poderiam oferecer para a pesquisa arqueológica.
Alguns estudiosos consideravam os
registros rupestres como manifestações recentes. Outros os atribuíam a
civilizações há muito desaparecidas, tais como egípcios, fenícios ou
mesopotâmicos. Muitos acreditavam que esses vestígios tinham sido realizados
pelos índios com os quais os primeiros colonizadores mantiveram contatos. Por
isso eles não despertavam interesse para os pesquisadores. Contudo, com a
realização de pesquisas arqueológicas de cunho acadêmico, nas décadas de 1970 e
1980, esse patrimônio começou a ser valorizado. Constatou-se a presença humana
em períodos relativamente antigos tanto nas Américas, quanto no Brasil.
Descobriu-se grande quantidade de sítios com pinturas rupestres nas mais
variadas regiões brasileiras. Pessis e Guidon (2000) afirmam que:
No
Brasil, as descobertas de novas regiões ricas em pinturas e gravuras rupestres
multiplicaram-se nos últimos anos. Hoje, pode-se afirmar que, na maior parte
das regiões rochosas do Brasil e, em particular na região Nordeste existem
abrigos ou grutas que serviram de suporte para essas manifestações picturais,
sobretudo onde houve condições de preservação.
As primeiras pesquisas realizadas
sobre as pinturas rupestres da região Nordeste do Brasil não tinham contexto
arqueológico. Fazia-se, por isso, exaustivas descrições desses registros.
Identificava-se características gerais nos distintos grafismos que se
apresentavam de formas diferentes nos mais variados espaços geográficos.
Fez-se, assim uma classificação preliminar atemporal e sem contexto
arqueológico. Para o entendimento da vida dos grupos Pré-Históricos, Martin
(2005) argumenta que:
Os
registros rupestres são, sem dúvida, uma fonte inesgotável de informações
antropológicas e devem ser estudados sob vários aspectos (...). A análise
múltipla do registro rupestre nos proporcionará respostas também múltiplas, de
grande valor para o conhecimento da sociedade Pré-Histórica que os realizou.
Dessa forma, justifica-se cada
vez mais a necessidade de ampliar os estudos em pintura rupestre, já que a
diversidade de informações que a mesma pode proporcionar é de total relevância
para a contextualização de uma área, e para o reconhecimento da identidade dos
seus autores. Segundo Kestering (2007), Identidade é o arquétipo a partir do qual os indivíduos e os grupos sociais constroem a
idéia de quem são e estabelecem o padrão de relação com outros membros da
própria espécie e com o ambiente, para garantir a sobrevivência e o sucesso
reprodutivo.
Esse trabalho tem a finalidade de
reconhecer a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho
das Traíras, no município de Sento Sé - BA para contribuir na identificação das
fronteiras da Subtradição Sobradinho. Segundo Kestering (2007) “os grafismos da
temática dominante da Subtradição Sobradinho apresentam traços contínuos, em
diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou da esquerda para a
direita e vice-versa, quando verticais”. Segundo o mesmo pesquisador, o
universo gráfico da Subtradição Sobradinho encontra-se em suportes de rochas da
Chapada Diamantina, Formação Tombador. Segundo Angelim (1997), caracteriza-se o
conjunto de rochas da Formação Tombador como:
arenitos parcialmente
silicificados, finos a médios, com estratificações cruzadas de grande porte;
arenitos médios a grosseiros e conglomeráticos com estratificações cruzadas
tabulares, acanaladas e festonadas; conglomerados desorganizados, eventualmente
polimíticos, basais.
Para o
desenvolvimento dessa pesquisa fez-se uma contextualização das atividades de
cunho arqueológico que foram realizadas na região de Sobradinho – BA. Os
trabalhos iniciais de Arqueologia na região ocorreram na década de 70, quando
da construção da Hidroelétrica de Sobradinho, que objetivava explorar o
potencial energético da região.
O Projeto
Sobradinho de Salvamento Arqueológico, coordenado por Calderón (1977)
desenvolveu-se em toda a área de inundação da Barragem, numa extensão de 4.214
km², bem como na área de segurança e suas adjacências. Considerando que a
cultura material da área da represa era importante para a compreensão da vida
dos grupos pré-históricos que ocuparam a região, o Projeto Sobradinho de
Salvamento Arqueológico, tinha como finalidade identificar, coletar e
salvaguardar o patrimônio que iria desaparecer quando a área ficasse inundada
(CALDERÓN, 1977).
Apesar do
tempo reduzido para as atividades de salvamento, a equipe conseguiu identificar
e salvar um número considerável de vestígios arqueológicos. Segundo Calderón
(1977: 35), “foi localizada e retirada quase uma tonelada de material, que está
sendo submetida a estudos de laboratório”.
Durante a realização dos trabalhos de campo a equipe de Calderón
visitou os locais que poderiam apresentar fragmentos de cerâmica e artefatos da
indústria lítica em superfície. Quando identificava vestígios arqueológicos, a
equipe realizava a demarcação da área, gerava plantas, fazia o registro
fotográfico para coletá-los em seguida. Confirmada a área como local de ocupação,
realizava-se a escavação de algumas sondagens (KESTERING, 2001).
Foi
durante essas atividades que se identificou os primeiros sítios com registros
rupestres na região de Sobradinho, sendo caracterizados pela equipe como sítios
com arte parietal. A equipe dividia a arte parietal em pictografias e
petroglifos.
Pictografias
são sinais e figuras pintadas pelos primitivos em rochedos e paredes de
cavernas. Petroglifos são qualquer sinal ou figura gravado ou esgrafiado pelos
primitivos em rochedos e paredes de cavernas, freqüentemente combinado com
pinturas (FERREIRA, 1975, apud KESTERING,
2005).
Com o fim dos trabalhos de campo do projeto Sobradinho de
Salvamento Arqueológico, nenhuma pesquisa adicional foi realizada na área, até
que Kestering (2001) inicia um trabalho de Caracterização dos registros
gráficos pré-históricos no Boqueirão do Riacho São Gonçalo, cadastrado pela
equipe de Valentin Calderón com o código BASF 129. A
referida pesquisa culminou na dissertação de mestrado intitulada “Registros
Rupestres na Área Arqueológica de Sobradinho”. Referindo-se aos
registros gráficos evidenciados no referido Boqueirão, Kestering (2001) afirma:
Trata-se
de um conjunto de trinta e um sítios arqueológicos com painéis de pinturas
rupestres situado na parte interna de um cânion resultante da drenagem
de um afluente temporário do Rio São Francisco. A abundância, a diversidade e o
número considerável de pinturas rupestres de diferentes horizontes culturais
levam a considerar a possibilidade de que essa área arqueológica tenha sido uma
zona de passagem de diferentes grupos étnicos pré-históricos.
Para
sustentar esta proposição, Kestering optou pelo procedimento da contextualização
das pinturas dos sítios. Constatou que, no boqueirão do Riacho São Gonçalo,
havia um universo de 109 painéis de pintura rupestre técnica e tematicamente semelhantes a grafismos rupestres realizados no Parque
Nacional Serra da Capivara, no Médio São Francisco e na região Agreste dos
estados de Pernambuco e da Paraíba. Pela falta de
evidências de assentamentos e de cronologias que indicassem períodos de
ocupação, os dados obtidos dos registros gráficos não lhe permitiram inferir
sobre a autoria das pinturas.
Até esse
momento pouco se sabe a respeito dos grupos que habitaram a região de Sobradinho
e realizaram as pinturas rupestres. A falta de um contexto arqueológico desvendado
fez com que os estudos tomassem como referência cultural apenas os registros
rupestres e o ambiente no qual estão inseridos. Necessita-se ainda de um maior
número de dados e informações que forneçam resultados mais confiáveis e que permitam
atribuir os grafismos da unidade de pesquisa a uma autoria social.
Na busca pela
identificação dos grupos que ocuparam a região, Luso (2005) realizou uma
pesquisa no Boqueirão do Brejo de Dentro, no município de Sento Sé – BA. A equipe de Valentin Calderón havia caracterizado essa
unidade de pesquisa como um sítio de rochas com pictografias, com o código BASF
128. Luso (2005) afirmou que é difícil reconhecer
a identidade de um grupo pré-histórico em uma área restrita. Disse que era
necessário adotar parâmetros básicos para caracterizar os grafismos rupestres,
o que pode contribuir para a identificação de uma autoria social.
Segundo Luso (2005: 14):
O Boqueirão do Brejo de Dentro não se resume a um único sítio.
Percorrendo toda a extensão do vale, desde o povoado até as últimas formações
rochosas, foram identificados 16 sítios com pinturas rupestres que, ao
contrário do São Gonçalo, apresentavam grafismos com certa homogeneidade. Neste
contexto, o problema central desse trabalho residiu no fato de que apesar das
características geo-ambientais não apontarem para um local de assentamento,
devido a sua formação geológica acidentada e ausência de abrigos, o local foi
densamente utilizado para a prática gráfica e sobre a qual não se sabe nada a
respeito das possíveis autorias.
Luso (2005) constatou uma dominância de grafismos que indicavam a
ocorrência de um padrão gráfico, o que lhe permitiu levantar a hipótese de terem
sido realizados por um mesmo grupo pré-histórico que ocupou a região, durante
um período relativamente longo. Argumentou que somente uma permanência
constante em um mesmo local permitiria o surgimento de um padrão gráfico com
características definidas. O padrão gráfico identificado é representado por
grafismos puros delimitados.
Tendo
em vista o potencial da Área Arqueológica de Sobradinho que se localiza na
região noroeste do Estado da Bahia, limítrofe entre o Médio e o Submédio São
Francisco, os trabalhos de Kestering (2001) e de Luso (2005) foram essenciais
para o início das pesquisas e a valorização do patrimônio dessa área. Na Área
Arqueológica de Sobradinho busca-se atualmente desvendar o contexto arqueológico que permita situar os
vestígios arqueológicos no espaço e no tempo. Em defesa de tese,
Kestering (2007) estabeleceu parâmetros básicos para a pesquisa em toda a área.
Argumentou que o reconhecimento
de atributos de identidades pré-históricas é feito pela identificação da
dominância de padrões de reconhecimento, temática, cenografia e técnica, nas
pinturas rupestres.
Com
a finalidade de identificar a identidade dos grupos que habitaram a região de
Sobradinho, definiu-se uma unidade de pesquisa em uma área de 115.200 hectares,
na margem direita do rio São Francisco, entre a fronteira leste das dunas
fósseis do Submédio São Francisco e a Barragem de Sobradinho (KESTERING, 2007).
Nela identificou-se 11 feições de relevo, com 112 sítios arqueológicos com
painéis de pintura rupestre em bom estado de conservação. Na busca pelo estabelecimento
de cronologias, buscou-se observar elementos da paisagem para relacioná-los com
os vestígios da cultura material.
Buscando
nas pinturas rupestres atributos que permitam identificar identidades,
Kestering (2007) afirma que:
Para segregar a identidade dos grupos
pré-históricos do Submédio São Francisco, busca-se, nas pinturas rupestres, o
reconhecimento de padrões gráficos. A padronização das ações que se manifesta
na cultura material da qual fazem parte a indústria cerâmica, os sepultamentos,
a indústria lítica e as fogueiras, são preservadas também nos grafismos
rupestres.
Kestering
(2007) constatou que, dos 112 sítios com pinturas rupestres, 45 (40,18%)
estavam localizadas nas altas vertentes, 27 (24,11%), nas médias e 40 (35,71%),
nas baixas. Em 774 painéis, com um total de 2.878 unidades de pinturas
analisadas, a dominância era de grafismos puros, com 87% das representações. Os
grafismos irreconhecíveis representavam 10% e os grafismos reconhecidos, 3% das
representações. Constatou que os grafismos puros encontravam-se em todos os boqueirões
e grotas. No que diz respeito ao padrão temático constatou a dominância de figuras
com traços contínuos, em diagonal ascendente e descendente (quando horizontais)
ou da esquerda para a direita e vice-versa (quando verticais), representando
11% do total de grafismos da unidade de pesquisa.
Este trabalho de pesquisa foi
realizado no Boqueirão do Riacho das Traíras onde há onze sítios arqueológicos
com pinturas rupestres muito deterioradas por insetos, ação antrópica, raízes
de plantas fixas nos suportes e pela exposição à chuva, ao vento e ao sol.
Entendeu-se que era necessário um trabalho de ação preventiva na área do
boqueirão em questão, para que se registrasse o patrimônio arqueológico antes
que o mesmo se deteriorasse por completo. Compreende-se como sítio arqueológico o lugar onde se encontram vestígios
arqueológicos de grupos humanos do passado. Em se tratando de registros
rupestres considera-se como sítio arqueológico uma unidade litológica e geomorfológica
com pinturas e/ou gravuras associadas ou não a outros vestígios arqueológicos.
O
reconhecimento de identidades pré-históricas nas pinturas rupestres é feito
pela identificação do padrão de reconhecimento, da temática dominante, da cenografia
e da técnica. Para se evidenciar o contexto arqueológico da referida área, é
fundamental a realização de escavações e intensificação de prospecções para identificar
outros conjuntos de grafismos realizados em diferentes suportes.
Formulou-se a hipótese de que o
conjunto de pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras pertenceria à
Subtradição Sobradinho. Essa hipótese fundamentava-se no fato de que a área da
pesquisa dista seis quilômetros do território onde Kestering (2007) constatou a
ocorrência dominante de grafismos dessa Subtradição. Tão logo se constatou,
porém, que as rochas do Boqueirão do Riacho das Traíras não eram da Chapada
Diamantina, Formação Tombador pensou-se que a dominância temática poderia não
corresponder à dominância temática da Subtradição Sobradinho.
2. Histórico
das pesquisas em pintura rupestre
Existem referências de que, em
meados do século XVII, o padre Francisco Telles dedicou-se ao estudo de
grafismos rupestres no Brasil. Para ele esses sinais representavam mapas e
indicações de tesouros deixados nas rochas pelos nativos ou pelos holandeses. Tentou
decifrá-los, fazendo analogias com o alfabeto hebraico e grego. Comparava-os
também com signos zodiacais (GASPAR, 2003).
Suas pesquisas permitiram o
surgimento de duas correntes interpretativas para a arte rupestre brasileira. A
primeira via as pinturas como uma linguagem pré-escrita. A segunda analisava-as
como símbolos de planetas, estrelas, constelações, ou qualquer outro objeto
ligado ao espaço (GASPAR, 2003). No século XIX, discutia-se se esses registros
eram mesmo de origem humana, ou se não passavam de processos causados por
agentes naturais.
No século XX, os registros
rupestres ganharam destaque no meio acadêmico. Havia dois grupos definidos. O
primeiro defendia o estudo e a valorização das pinturas rupestres porque elas
eram uma espécie de pré-escrita incipiente, carregada de significados. Para o
segundo grupo, essas manifestações não passavam de caprichos dos nativos do
passado. Nada informava a respeito da vida dos mesmos e, portanto, não seriam
dignas de atenção (GASPAR, 2003).
Para alguns estudiosos, os
grafismos rupestres pertenceriam a civilizações há muito desaparecidas, tais
como fenícios ou mesopotâmicos. Essa visão preconceituosa não permitia atribuir
sua autoria aos índios. Para eles, as comunidades encontradas no território
brasileiro, na época do descobrimento, eram muito atrasadas para comporem esses
vestígios. Os mesmos eram considerados incapazes de terem elaborado desenhos
com relativa simetria e precisão (GASPAR, 2003).
Na década de 1960, os antropólogos
H. Baldus e J. A. Pereira classificaram pinturas rupestres de Santana da
Chapada, adotando critérios relacionados com o estilo e a técnica. Inauguraram,
assim, dois métodos básicos e fundamentais para qualquer estudo em pintura
rupestre. Depois deles, muitos pesquisadores buscaram adotar teorias e
estabelecer parâmetros para o estudo da arte rupestre em diferentes contextos. Destacam-se
os trabalhos de Annette Laming-Emperaire, pesquisadora francesa, que demonstrou
a existência de regras essenciais seguidas pelos autores na confecção dos
grafismos. Sob sua responsabilidade realizou-se as primeiras datações dos
registros gráficos da região de Minas Gerais. Laming-Emperaire buscava
inseri-los no contexto pré-histórico regional e nacional (PROUS, 1992).
As pesquisas arqueológicas ampliaram-se
a partir da década de 1970, com as missões Franco-brasileiras, no Estado de
Minas Gerais e na região Sudeste do Piauí. A partir da pesquisa e da geração de
bancos de dados, Niède Guidon e André Prous sintetizaram os resultados de suas
áreas de pesquisa (Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí e Lagoa Santa, MG,
respectivamente). Esses pesquisadores criaram quadros relativamente completos
de referências, com as diferentes manifestações, bem como suas distribuições no
território brasileiro (PROUS, 1992).
A identificação de registros
rupestres é um forte indício da presença ou da passagem de grupos
pré-históricos em uma determinada região. Os mesmos podem ser encontrados em
grutas, boqueirões, paredes de abrigos ou em outros tipos de suporte. São
produzidos sobre a superfície de rochas que, em muitos casos, não podem ser
transportadas (MARTIM, 2005).
Schmitz et. al. (1984) compreende registro rupestre como “as mais variadas
expressões gráficas produzidas em suportes rochosos, do tipo grutas, paredes de
abrigos, rochas isoladas ou agrupadas em campo aberto, ou em outro tipo qualquer
de suporte”.
As primeiras pesquisas sobre
pinturas rupestres não tinham contexto arqueológico desvendado. Esses trabalhos
estavam ligados exclusivamente a descrições dos registros. Buscou-se, então,
identificar características gerais nos distintos grafismos que se apresentavam
de formas diferentes nos mais variados espaços geográficos. Buscava-se o
estabelecimento de classes inicias (PESSIS, 1992). Guidon (1989) sugeriu um
ordenamento preliminar para esses vestígios. Os grafismos da região Nordeste do
Brasil foram divididos, então, em quatro grupos de registros gráficos. As
pinturas foram segregadas em três tradições, Nordeste, Agreste e Geométrica e
as gravuras, na tradição Itacoatiara.
À
Tradição Nordeste, identificada em muitos sítios do Parque
Nacional Serra da Capivara, são integrados os grafismos reconhecidos (presenças
humanas, animais, plantas e objetos) e alguns tipos de grafismos puros. Os
grafismos reconhecidos com freqüência estão dispostos de modo a representar
ações cujas temáticas são, por vezes, reconhecidas (PESSIS, 1992 apud KESTERING, 2007).
A
Tradição Agreste, identificada em sítios do Agreste
dos estados de Pernambuco e Paraíba, caracteriza-se pela predominância de
grafismos reconhecidos, particularmente da classe de figuras humanas, sendo
raros os animais. Não aparecem representações de objetos, nem figuras
fitomorfas. Os grafismos representando ações são raros e retratam unicamente
caçadas. As figuras são representadas paradas, não existindo nem movimento, nem
dinamismo. Os grafismos puros, muito abundantes, apresentam morfologia
diversificada (PESSIS, 1992 apud KESTERING,
2007).
A
Tradição Geométrica, identificada também na região
Nordeste, caracteriza-se pela presença dominante de grafismos puros, figuras
humanas e algumas mãos, pés e répteis extremamente simples e esquematizados (PESSIS, 1992 apud KESTERING, 2007).
A Tradição
Itacoatiara é integrada por gravuras representando figuras que
não permitem nenhum reconhecimento. Raramente alguma figura reconhecível é
representada de maneira isolada. (PESSIS,
1992, apud KESTERING, 2001).
Pessis (1992: 42) argumenta que:
Nos
grupos dos registros rupestres pintados e reconhecíveis, foi possível
identificar duas grandes classes caracterizadas pelo tipo de grafismo que as
compunham e a proporção em que apareciam. Foi relativamente fácil fazer essa
distinção porque, no Nordeste do Brasil, se identificaram duas classes de
pinturas reconhecíveis: as pinturas em que as figuras representavam pessoas e
animais muito freqüentemente desenvolvendo ações da vida quotidiana e
cerimonial, e as pinturas em que as figuras representavam pessoas e animais em
posição estática, sem desenvolver nenhuma ação. Os painéis são de figuras
acompanhadas de grafismos não reconhecíveis, que possuem uma morfologia que se
repete nos diferentes sítios em que este grupo de pinturas é dominante.
Com essas classificações iniciais
começaram os estudos sistemáticos dos registros rupestres. Pesquisas
arqueológicas realizadas nas últimas décadas permitiram desvendar, no Parque
Nacional Serra da Capivara, um contexto arqueológico que tem sido importante para
os estudos desses vestígios. Este contexto, segundo Pessis (1992: 45), “determinou
a necessidade do estabelecimento de parâmetros mais afinados que aqueles
utilizados nas classificações preliminares”.
A classificação preliminar e o
contexto arqueológico desvendado fomentaram o estabelecimento de critérios para
o reconhecimento dos registros rupestres. Alguns deles apresentam
características que permitem relacioná-los com objetos, com animais, com humanos,
com plantas e com braços, mãos ou pés. Nesse trabalho, esses grafismos são
considerados conhecíveis porque o pesquisador pode identificá-lo como unidade
gráfica, no momento em que o descobre, relacionando-o com algo que faz parte do
seu mundo conhecido. As unidades de grafismos conhecíveis são facilmente
identificadas porque representam componentes essenciais de elementos do mundo
sensível conhecido. Para a identificação de grafismos reconhecíveis, que não
representam realidades conhecidas, considera-se unidade gráfica um signo ou
todo o conjunto de signos e espaços vazios de um painel, enquanto não são
identificadas figuras tematicamente semelhantes em outros painéis. Eles são,
por isso, reconhecíveis nas recorrências Há outros que somente são
identificados nas recorrências, por comparação ou por exclusão. A esses, no
presente trabalho, considera-se como reconhecíveis. Os grafismos que, neste
trabalho, se considera como reconhecíveis costumam ser descritos como
geométricos (GUIDOM, 1989), puros (PESSIS, 1992), abstratos (CALDERÓN, 1977) ou
metafóricos (HERNANDO, 2002). Há outros grafismos que, por perda de partes ou
distribuição informe da tinta, não são reconhecíveis. Chama-se a eles de irreconhecíveis.
3. Classificação:
tradição e subtradição
Cada
grupo cultural tem seu padrão de comportamento, seu “modus vivendi et operandi”.
São gestos e traços culturais próprios que o distinguem dos grupos ligados a
outras tradições culturais. Os registros rupestres não são apenas a
manifestação cultural de um indivíduo, mas de um grupo a que o indivíduo
pertence. O realizador é o sujeito revelador da expressão cultural do seu
grupo. A estrutura cultural do grupo determina ou influencia os gestos e
hábitos que o autor expressa nos artefatos que produz. Neste campo inclui-se
também a produção gráfica, tendo as pinturas rupestres um lugar garantido como
parte dessa produção cultural.
Dessa
forma, entende-se que todo indivíduo é dependente do seu meio e revela, nas
expressões culturais, a experiência do seu grupo social. Sendo assim, a
filiação das pinturas a uma tradição continua sendo um caminho para a
identificação do tronco cultural a que pertenceram os autores dos grafismos dos
sítios arqueológicos. Sua identificação deixa, porém, de ser o procedimento
inicial de uma pesquisa para ser o resultado de muitos estudos comparativos de
grafismos contextualizados. Segundo Kestering (2005):
É possível chegar-se à identificação de
tradições através do reconhecimento de conjuntos de sinais gráficos homólogos
ou análogos que revelam particularidades peculiares dos grupos étnicos e
heranças culturais comuns de grupos dissidentes ou diversificados.
Para segregar conjuntos de
grafismos em classes é necessário que se adote um quadro teórico bem
fundamentado. Atualmente o modelo classificatório mais empregado para conjuntos
de registros rupestres é o que utiliza os conceitos de tradição, subtradição e
estilo. Essa proposta metodológica, apesar de ter apresentado algumas
modificações nos seus conceitos, prevalece nas pesquisas dos registros
rupestres. Segundo Cisneiros (2008),
Os estudos mais sistemáticos sobre grafismos rupestres no Brasil foram
pautados nos conceitos de tradição, subtradição e estilo. Esses conceitos foram
introduzidos e incorporados aos estudos dos grafismos rupestres pelos
Programas: PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), PRONAPABA
(Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica) e PROPA
(Programa de Pesquisa Paleoindígena) (sic).
Segundo Martin (2005):
O conceito de tradição compreende a representação visual de todo um
universo simbólico primitivo que pode ter sido transmitido durante milênios sem
que, necessariamente, as pinturas de uma tradição pertençam aos mesmos grupos
étnicos, além do que poderiam estar separados por cronologias muito distantes.
O termo tradição está bem aceito e arraigado no Brasil para as macro-divisões
de registros rupestres, se bem que nem todos os autores estejam de acordo com a
sua conceituação. Já que o referido é utilizado também para as indústrias
líticas e cerâmicas, equivalente ao conceito de horizonte cultural.
Prous (1992) entende como
tradição “a categoria mais abrangente entre as unidades rupestres descritivas,
implicando numa certa permanência de traços distintos, geralmente temáticos”.Kestering
(2007) propõe a filiação dos grafismos da Área Arqueológica de Sobradinho - BA na
hipotética Tradição São Francisco. Segundo Prous (1992), as principais
características da Tradição São Francisco são:
Os grafismos abstratos (geométricos) sobrepujam amplamente em
quantidade os zoomorfos e antropomorfos, perfazendo entre 80% e 100% das
sinalações. Na quase totalidade dos casos (excluindo-se o estilo mais antigo),
a utilização da bicromia é intensa nas figuras pintadas. Os raros zoomorfos são
quase que exclusivamente peixes, pássaros, cobras, sáurios e talvez tartarugas.
Notável é a ausência dos cervídeos; não existe nenhuma cena, mesmo de tipo
‘implícito’, mas existem, por vezes, trocadilhos entre biomorfos e sinais (na
região de Montalvânia).
Pelo ordenamento classificatório
proposto por Pessis (1992), as subtradições são modificações de uma tradição,
em conseqüência do contato dos grupos com outros tipos de ambiente. Segundo
Kestering (2007)
A
subdivisão das tradições em subtradições fundamenta-se no pressuposto de que os
grupos desvinculados continuam realizando, por algum tempo, grafismos com o
mesmo padrão cenográfico, adicionando componentes temáticos e técnicos surgidos
como resultado das adaptações ambientais e sociais ao novo hábitat.
Após propor a
classificação dos grafismos da região do Submédio São Francisco como filiados a
hipotética Tradição São Francisco, Kestering (2007) define a Subtradição
Sobradinho, apresentando as seguintes características:Os
grafismos da temática dominante da Subtradição Sobradinho apresentam traços
contínuos, em diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou da
esquerda para a direita e vice-versa, quando verticais. Neles identificam-se
três padrões técnico-temáticos, um é dominante nas altas, outro, nas médias e o
terceiro, nas baixas vertentes.
4. Metodologia:
registro e tratamento dos dados
Inicialmente
realizou-se um estudo bibliográfico sobre atributos que permitem o
reconhecimento da identidade de grupos pré-históricos. Continuou-se com o estudo
bibliográfico sobre tradição e subtradição, buscando compreender a metodologia
para a identificação de padrões de pintura rupestre.
Em
seguida, fez-se uma pesquisa imagética, com base nas pesquisas anteriores
realizadas no Vale do São Francisco. O cadastro dos
sítios arqueológicos foi realizado em fichas de campo, seguindo o modelo de
Kestering (2007). Fez-se uma adaptação das mesmas para atender algumas
particularidades da pesquisa. O tema Identidade dos grupos
pré-históricos de Sobradinho – BA serviu de base para definição do
quadro teórico e metodológico.
Nas atividades de campo utilizou-se um GPS (Garmin) modelo “Etrex
Vista” que possibilitou o mapeamento e a transferência de dados para o
computador. Utilizou-se também imagens do Google Earth 2010
para definir as coordenadas e a distribuição espacial dos sítios identificados.
Fez-se
o levantamento imagético com câmeras fotográficas digitais. O registro fotográfico foi o instrumento adotado como
recurso analítico para identificação dos registros gráficos. Trabalhou-se com
uma câmera fotográfica Kodak de 12 megapixels, sempre apoiada a um tripé. As
fotografias foram feitas com a escala IFRAO, já que a mesma é recomendada para
auxiliar na identificação das cores reais dos painéis. O tripé e a escala foram
dispensados quando o sítio apresentava particularidades físicas que não permitiam
sua utilização.
Informações
referentes aos sítios, bem como, aos painéis de pintura rupestre foram
registradas em caderno de campo a fim de proporcionar um maior controle e
organização das atividades que vinham sendo desenvolvidas.
Em laboratório fez-se
o descarregamento das imagens e fez-se o seu melhoramento, utilizando para isso
programas de tratamento de imagens como: Corel Draw X 4 e Adobe Photoshop 9.0,
permitindo assim uma maior visualização e identificação dos grafismos.
Fez-se a pesquisa
no Boqueirão do Riacho das Traíras, porque localiza-se a 6 km, em linha reta,
do Boqueirão do Riacho São Gonçalo onde foram identificados 32 sítios
arqueológicos com pintura rupestre. Esse boqueirão serviu de referência para a
dissertação (2001) e para a tese de Kestering (2007) (Fig. 1). Decidiu-se fazer
a pesquisa nessa feição de relevo para registrar o patrimônio que se encontra
em fase de desaparecimento pelas constantes agressões de insetos, fogo,
desplacamento, salitre, pichação, raízes de plantas fixas nos suportes,
exposição ao vento, ao sol e à chuva.
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FIGURA 1 – Localização do Boqueirão do Riacho das Traíras no município de Sento Sé – BA
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5. Geologia
A unidade de pesquisa localiza-se
em um veio estreito e relativamente longo de quartzo intrusivo na Unidade
Sobradinho do Complexo Rio Salitre com direção nordeste – sudoeste onde
estão inseridos 11 sítios arqueológicos (Fig. 2 e 3). Veios de quartzo são
intrusões onde se costuma encontrar minerais de valor econômico. Os veios
distinguem-se, por vezes, dos diques e pegmatitos por causa de sua formação
muito lenta. O processo de enchimento dos veios é assunto muito discutido,
existindo uma série de hipóteses para explicar a sua formação. O veio do
Boqueirão do Riacho das Traíras é do tipo leitoso, de pouco valor econômico.
Está ladeado, no setor leste e oeste, “por filitos / filonitos e xistos com
raras metamáficas / ultramáficas” (ANGELIM, 1997). Filitos / filonitos são
rochas argilosas, metamáficas, de estrutura cristalina, intermediárias entre os
argilitos e os micaxistos. Na sua composição mineralógica, estes xistos
argilosos são pouco micáceos, possuindo silicato de alumínio, um pouco de
quartzo e dificilmente feldspatos. Podem ter cor avermelhada, acinzentada,
esverdeada, amarelada ou azulada. Xistos são rochas metamórficas na quais os
diferentes minerais se encontram dispostos em camadas, ao contrário do que se
observa nas eruptivas (GUERRA et. al. 2005).
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FIGURA 2 – Situação geológica do Boqueirão do Riacho das Traíras |
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FIGURA 3 – Distribuição espacial dos sítios arqueológicos no boqueirão
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6. Geomorfologia
e contexto arqueológico
O Boqueirão do Riacho das Traíras
é um entalhamento resultante da dissecação fluvial promovida, durante milhões
de anos, no conjunto de rochas do veio de quartzo, nos filitos / filonitos, nos
xistos e nas rochas metamáficas / ultramáficas” da Serra das Traíras (Fig. 4 e
5). Além dos sítios arqueológicos com pintura rupestre encontram-se dois
outros: a Oficina Lítica das Traíras e a Aldeia do Libório.
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FIGURA 4 – Vista parcial do Boqueirão do Riacho das Traíras
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FIGURA 5 – Entalhamento promovido pelo riacho no boqueirão
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O sítio
Oficina Lítica localiza-se nos filitos / filonitos, próximo ao
veio de quartzo, nas coordenadas UTM 24L 286292, UTMN 8928821, a 451m de
altitude. Nele existem bases fixas de polimento ou de pilão (Fig. 6).
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FIGURA 6 – Bases de pilão fixas na rocha constituída de filitos / filonitos
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FIGURA 6 – Bases de pilão fixas na rocha constituída de filitos / filonitos
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