Arte rupestre no quintal: o caso da Pedra Ferrada e o desafio da preservação patrimonial


Luis Carlos Duarte Cavalcante cavalcanteufpi@yahoo.com.br
Adna Lusane Nunes Ferreira
Mayana de Castro
mayanacastro@hotmail.com
Natália Gomes de Sousa
naty_talzinha@hotmail.com

Curso de Arqueologia e Conservação de Arte Rupestre, Universidade Federal do Piauí, Brasil

RESUMO

O sítio Pedra Ferrada é um complexo arenítico da Formação Cabeças – Membro Oeiras, localizado no povoado Oiticica, município de Piripiri, estado do Piauí, Brasil, contendo 37 registros rupestres, majoritariamente grafismos puros e carimbos de mãos humanas, distribuídos em quatro paineis pictóricos. As pinturas foram elaboradas principalmente em diferentes tonalidades de vermelho e em um púrpura quase preto. Os painéis gráficos têm abertura para vários posicionamentos geográficos. O estado de conservação das pinturas é bom, mas a rocha está em avançado estado de degradação natural, sobretudo pelas ações mecânica, química e biológica das plantas presas ao substrato rochoso. As raízes de plantas trepadeiras, que estão fortemente fixadas, abrem fissuras na rocha matriz, além de penetrarem naquelas já existentes, esfacelando o suporte rochoso. Também existem muitas bromeliáceas, líquens e musgos. A rocha matriz contém ainda marimbondos e insetos. Há manchas de fumaça, decorrentes da eliminação dos marimbondos e abelhas, além de galerias de cupins, ninhos de vespas, teias de aranha, eflorescências salinas e gameleiras fixadas no arenito. A fonte de água mais próxima é um riacho a cerca de 100 metros do sítio. Os diversos problemas de ação antrópica estão especialmente relacionados com a grande proximidade das residências do entorno do complexo arenítico e a elevada densidade de pessoas permanentemente na área. Como consequência, o sítio é continuamente visitado, sendo utilizado como depósito de entulhos, além da existência de um campo de futebol de areia, localizado lateralmente ao bloco rochoso.

Palabras Chave: Arte rupestre. Patrimônio cultural arqueológico. Conservação. Pedra Ferrada.

 

 

Introdução

A região arqueológica de Piripiri, no estado do Piauí, Brasil, vem sendo pesquisada sistematicamente desde abril de 2009. Os trabalhos iniciais foram direcionados principalmente aos povoados Buriti dos Cavalos (CAVALCANTE; RODRIGUES. P., 2009, 2013), Jardim (CAVALCANTE; RODRIGUES, A., 2010), Cadoz Velho (CAVALCANTE; RODRIGUES, A., 2012) e circunvizinhanças imediatas.

Historicamente, os únicos trabalhos arqueológicos anteriores, nessa região, de que se têm notícias são o cadastramento dos sítios (NAP-UFPI/IPHAN, 1986 a 2005; MAGALHÃES, 2011), feito, por pesquisadores do Núcleo de Antropologia Pré-Histórica (NAP), da Universidade Federal do Piauí (UFPI), entre dezembro de 1995 e novembro de 1997, para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e a obra intitulada “Inscrições Pré-Históricas de Piripiri”, do geólogo Reinaldo Coutinho, publicada em 1996 (COUTINHO, 1996), a qual aborda os sítios arqueológicos de maneira substancialmente fantasiosa.

Atualmente, as investigações evidenciaram uma coleção de registros rupestres numericamente excepcional, apresentando, em alguns sítios (Figura 1), padrões policrômicos, frequente recorrência dos motivos pintados e elevada ocorrência de sobreposições entre as inscrições rupestres e manchas vestigiais de tinta pré-histórica. A existência de gravuras rupestres, majoritariamente na forma de cúpules, é outro elemento interessante desse conjunto de sítios, grafadas harmonicante com os registros rupestres pintados.

 

Figura 1. Localização geográfica de alguns sítios de arte rupestre da região
arqueológica de Piripiri, no estado Piauí, Brasil. FONTE: Google Earth.

 

As prospecções no entorno dos sítios já cadastrados evidenciaram vários outros, em sua maioria, situados em locais de difícil acesso, como é o caso dos povoados Buriti dos Cavalos e Cadoz Velho, nos quais mais de uma dezena de novos sítios de registros rupestres foram recentemente localizados.

 

As pinturas rupestres foram feitas em pontos de erosão alveolar em rochas areníticas da Formação Cabeças – Membro Oeiras, as quais apresentam a feição externa semelhante a carapaças de tartaruga, estruturas resultantes da modelagem diferencial pelas ações, sobretudo, das chuvas e dos ventos (FORTES, 1996; Figura 2).

Figura 2. Feições do arenito típico da Formação Cabeças – Membro Oeiras.
Buriti dos Cavalos, Piripiri, Piauí.



Todos os sítios arqueológicos dessa região apresentam problemas de conservação, em algum grau, dependendo dos agentes de degradação que atuam. Projetos atualmente em andamento buscam o conhecimento mais aprofundado de parâmetros térmicos (do ambiente e do substrato rochoso, áreas com e sem pinturas rupestres), da umidade relativa e da velocidade dos ventos, aspectos diretamente relacionados aos agentes degradantes.

 

Este artigo, em especial, apresenta o sítio Pedra Ferrada, um complexo rochoso que tem quatro paineis de pinturas rupestres e que está localizado em uma área com residências e frequentes intervenções antrópicas, pelos moradores do entorno.



Metodologia

Os trabalhos de campo foram realizados de forma a conhecer o sítio (registros rupestres, substrato rochoso e problemas de conservação envolvidos) e o ambiente no qual ele está inserido (geomorfologia, flora – presente no sítio e em seu entorno imediato – e fauna – presente no suporte pétreo e vizinhança).

As áreas com pinturas foram divididas em paineis; posteriormente realizou-se a contagem dos registros rupestres, por painel; verificou-se a recorrência dos motivos representados; a observação das cores dos pigmentos usados na elaboração dos grafismos; a medição da largura média do traço gráfico e dos tamanhos das figuras. Além disso, realizou-se o levantamento fotográfico com e sem escala (das pinturas, dos depósitos de alteração e do ambiente do entorno), bem como se verificou a ocorrência ou não de sobreposições de cores e de inscrições rupestres. Também se efetuou a medição da altura superior e inferior dos registros, em relação ao nível médio do solo atual.

 

A flora foi descrita, preliminarmente, com base na nomenclatura popular, fornecida por moradores da região e a identificação científica dos espécimes catalogados em campo foi efetuada com base na literatura especializada da área. A descrição da fauna ficou circunscrita aos animais que influenciam diretamente nos problemas de conservação dos registros pintados.

 

A localização geográfica foi realizada via utilização de GPS Garmin Etrex, (Datum WGS 84). Investigou-se ainda a orientação geográfica da abertura das manchas gráficas.

 

Todos os procedimentos de campo foram documentados exaustivamente através de anotações em caderno destinado para este fim e pela composição de um banco de imagens digitais, visando, entre outros aspectos, o monitoramento do estado de conservação do sítio investigado.

 

 

O sítio Pedra Ferrada

O sítio Pedra Ferrada situa-se em um complexo arenítico em avançado estado de degradação, localizado nas coordenadas geográficas 4º25’11,6” de Latitude Sul e 41º43'15,9” de Longitude Oeste, a 219 metros em relação ao nível médio do mar, no povoado Oiticica, área rural do município de Piripiri, estado do Piauí, Brasil. São quatro paineis gráficos, espacialmente separados, contendo um total de 37 registros rupestres representando grafismos puros e alguns poucos carimbos de mãos humanas. As pinturas foram elaboradas principalmente em diferentes tonalidades de vermelho e em um púrpura quase preto.

 

A vegetação do entorno (Figura 3) é típica de cerrado com algumas intrusões de caatinga, com exemplares de macambira (Bromelia laciniosa Mart. ex Schult. F), capim (Eragrostis pilosa (L.) P. Beauv.), relva rasteira, pitomba (Talisia esculenta Raldk.), fonte, farinha-seca (Casearia ulmifolia Cambess.), fedegoso (Senna occidentalis (L.) Link.), muta (Myrcia fallax (Rich.) DC.), pequiá (Aspidosperma parvifolium A.DC.), pau-de-terra (Qualea grandiflora), gameleira (Ficus gameleira Standl), canjarana, araticum (Annona coriacea Mart.), lacre, jatobá (Hymenaea courbaril L.), cascudo, cajuí (Anacardium microcarpum Ducke.), cana (Saccharum officinarum Roxb.), banana (Musa paradisiaca L.), birindiba, faveira (Parkia platycephala Benth.), cajueiro (Anacardium occidentale L.), pitomba de leite, imburana (Amburana cearensis (Allemão) A.C.Sm.), ameixa (Ximenia americana L.), aroeira verdadeira (Myracrodruon urundeuva Allemão), angico-preto (Anadenanthera macrocarpa (Benth.) Brenan) e janaguba (Himatanthus drasticus (Mart.) Plumel).

 

A fauna mais frequente no sítio é composta por abelhas italianas, vespas-marimbondo, vespas-maria-pobre, rabudos, preás (Cavia aperea), caprinos, ovinos, suínos e bovinos.

Figura 3. Vegetação do entorno do sítio Pedra Ferrada. Piripiri, Piauí.



Descrição dos painéis gráficos

 

Painel 1

 

O Painel 1 (Figura 4) tem 9 grafismos voltados para leste, com o registro mais alto a 2,20 m e o mais baixo a 1,90 m, ambos em relação ao nível médio do solo atual. A largura média do traço gráfico é de 1,2 cm.

Figura 4. Vista panorâmica e pinturas rupestres do Painel 1. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.


Painel 2

 

O Painel 2 (Figura 5) tem 14 registros rupestres (Figura 6) voltados para o norte e situa-se a 5,70 m à direita do Painel 1. O grafismo mais alto está a 1,16 m e o mais baixo a 34 cm, ambos em relação ao nível médio do solo atual. A largura média do traço gráfico varia de 7,0 mm; 1,0 cm; 1,2 cm. Entre os motivos pintados, há a recorrência de 4 carimbos de mãos humanas.

Figura 5. Visão panorâmica do Painel 2. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.
Figura 6. Pinturas rupestres do Painel 2. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.

 

Painel 3

 

O Painel 3 (Figura 7) tem 6 registros rupestres voltados para o oeste e está situado a 1,95 m à direita do Painel 2. O registro mais alto localiza-se a 3,65 m e o mais baixo a 3,40 m, ambos em relação ao nível médio do solo atual. A largura média do traço gráfico varia de 9 mm;10 mm; 11 mm; 12 mm. Marcas de respingos indicam que as pinturas foram feitas com a tinta no estado líquido.

 

Figura 7. Pinturas rupestres do Painel 3. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.

 

Painel 4

 

O Painel 4 (Figura 8) tem 8 registros rupestres (Figura 9) voltados para o sudoeste e localiza-se a 21 m à esquerda do Painel 1. O grafismo mais alto situa-se a 1,18 m e o mais baixo a 65 cm, ambos em relação ao nível médio do solo atual. A largura média do traço gráfico das pinturas é 0,7 cm; 1,2 cm; 1,3 cm; 1,5 cm.

Figura 8. Visão panorâmica do Painel 4. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.
Figura 9. Pinturas rupestres do Painel 4. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.



Análise do estado de conservação

 

O estado de conservação das pinturas é bom, mas a rocha está sendo deteriorada pela vegetação. O bloco de arenito enfrenta muitos problemas de conservação, sendo que o principal é a presença de raízes de plantas trepadeiras, que estão fortemente fixadas, penetrando nas fissuras existentes e abrindo outras, literalmente esfacelando o suporte rochoso. Existem principalmente muitas bromeliáceas e gameleiras fixadas ao suporte rochoso e verifica-se também a ocorrência de líquens e musgos. A rocha matriz contém ainda vespas-marimbondo e insetos. Há manchas de fuligem, decorrentes da eliminação de vespas-marimbondo e abelhas, além de galerias de cupins, ninhos de vespas-maria-pobre, teias de aranha e eflorescências salinas. A fonte de água mais próxima é um riacho a cerca de 100 metros do sítio.

 

Os diversos problemas de ação antrópica estão especialmente relacionados com a grande proximidade das residências do entorno do complexo arenítico e a elevada densidade de pessoas permanentemente na área. Como consequência, o sítio é continuamente visitado, sendo utilizado como depósito de entulhos, além da existência de um campo de futebol de areia (Figura 10), localizado lateralmente ao bloco rochoso e na frente do Painel 1.

Figura 10. Campo de futebol na frente do Painel 1. Sítio Pedra Ferrada, Piripiri, Piauí.


Considerações finais

Os carimbos de mãos humanas são os únicos registros rupestres reconhecíveis no sítio Pedra Ferrada e os respingos de tinta pré-histórica são fortemente indicativos de que as pinturas foram feitas com os pigmentos no estado líquido. A largura média dos traços gráficos também é sugestiva de que as pinturas tenham sido executadas com os dedos das mãos, exceto na representação dos carimbos de mãos, em que as palmas foram previamente pintadas e posteriormente impressas na parede rochosa.

Esse sítio chama a atenção pelo fato das pinturas rupestres estarem bem preservadas, embora o complexo rochoso no qual os paineis foram pintados esteja encravado em uma área com moradias humanas muito próximas (Figura 11). O fluxo de pessoas, de bicicletas e até mesmo de veículos é preocupante, mesmo que não tenham sido verificados atos de vandalismos (como pichações, por exemplo) diretamente nas pinturas.

Figura 11. Casas no entorno do sítio Pedra Ferrada. Piripiri, Piauí. FONTE: Google Earth.


A deposição de lixo no sítio exige medidas de educação patrimonial, na tentativa de solucionar o problema, sobretudo porque os dejetos podem favorecer o surgimento de problemas novos, além de aumentar o número de animais na área.

O campo de futebol na lateral do complexo arenítico e na frente do Painel 1 é resultante da remoção de vegetação ao longo do tempo e atualmente influencia na disponibilidade de sedimentos finos, que danificam as pinturas por abrasão.

 

 

 

 

¿Preguntas, comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com

 

Cómo citar este artículo:

Duarte Cavalcante, Luis Carlos; Nunes Ferreira, Adna Lusane; de Castro, Mayana;
Gomes de Sousa, Natália.
Arte rupestre no quintal: o caso da Pedra Ferrada e o desafio da preservação patrimonial. En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/pedraferrada.html

 

2013

 

REFERENCIAS

 

 

CAVALCANTE, L. C. D.; RODRIGUES, A. A. Arte rupestre e problemas de conservação da Pedra do Cantagalo I. International Journal of South American Archaeology, n. 7, p. 15-21, 2010.

CAVALCANTE, L. C. D.; RODRIGUES, A. A. Pinturas rupestres do sítio Cadoz Velho I, Piripiri, Piauí. Rupestreweb – Arte Rupestre em América Latina, não paginado, 2012. Disponível em: <http://www.rupestreweb.info/piripiri.html>. Acesso em: 12 dez. 2012.

CAVALCANTE, L. C. D.; RODRIGUES, P. R. A. Análise dos registros rupestres e levantamento dos problemas de conservação do sítio Pedra do Atlas, Piripiri, Piauí. Clio Arqueológica, v. 24, n. 2, p. 154-173, 2009.

CAVALCANTE, L. C. D.; RODRIGUES, P. R. A. Pedra do Dicionário: registros rupestres e propostas de intervenção de conservação. Clio Arqueológica, 2013. Submetido.

COUTINHO, R. Inscrições pré-históricas de Piripiri. Piripiri: J. A. Gráfica e Editora Ltda., Edição do autor, 1996.

FORTES, F. P. Geologia de Sete Cidades. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1996.

MAGALHÃES, S. M. C. A arte rupestre no centro-norte do Piauí: indícios de narrativas icônicas. 2011. 456 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.

NAP-UFPI/IPHAN. Levantamento e cadastramento de sítios arqueológicos do estado do Piauí – 1ª a 10ª Etapa. Teresina: NAP-UFPI, 1986 a 2005.

 

 


[Rupestreweb Inicio] [Introducción] [Artículos] [Noticias] [Mapa] [Investigadores] [Publique]