Padrão de reconhecimento e temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho de São Pedro
e do Boqueirão da Residência, no município de Sento
Sé – BA, Brasil

Rakel de Castro Alves. Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). rakel.castroalves@gmail.com

Celito Kestering Licenciado em Filosofia, Psicologia e Sociologia pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL, 1974); bacharel em Agronomia pela Faculdade de Agronomia do Médio São Francisco (FAMESF,1980); mestre em Pré-história (2001) e doutor em Arqueologia (2007) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Professor adjunto 3 no Colegiado do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF); Tutor do Grupo PET/Arqueologia. Campus Serra da Capivara, Rua João Ferreira dos Santos, S/N; Bairro Campestre; São Raimundo Nonato – PI; CEP: 64.770-000.
celito.kestering@gmail.com

 

RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo analisar o padrão de reconhecimento e a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência, no município de Sento Sé – BA. Nesses boqueirões identificaram-se quatro sítios arqueológicos (São Pedro 1 e 2; Residência 1 e 2) com painéis de pinturas rupestres bastante deteriorados pela ação de insetos, exposição à chuva, ao vento, ao sol e, principalmente, à ação antrópica (pichadores). Esse trabalho teve a finalidade de estudá-los antes que este patrimônio se perca por completo. A pesquisa foi realizada com o intuito de classificar o conjunto de pinturas dos boqueirões em uma hipotética tradição e em uma subtradição, para contribuir no reconhecimento da identidade de seus autores e na delimitação do território ocupado pelos grupos pré-históricos que realizaram os painéis de pintura rupestre da Subtradição Sobradinho.

Palabras Claves: Pintura rupestre. Subtradição Sobradinho. Boqueirão do Riacho de São Pedro. Boqueirão da Residência. Sento Sé - BA.

 

 

ABSTRACT

 

This study aimed to analyze the pattern recognition and the dominant theme in the paintings of the Boqueirão do Riacho de São Pedro and the Boqueirão da Residência in Sento Sé – BA municipality. In these gullies were identified four archaeological sites (São Pedro 1 and 2; Residência 1 and 2) that have paintings very damaged by the action of insects, exposure to rain, wind, sun, and especially to human action (taggers). This work aimed to study them before this heritage is lost completely. The study was conducted in order to classify the set of paintings of gullies in a hypothetical tradition and in a subtradition, to contribute to the recognition of the identity of the authors and the delimitation of the territory occupied by prehistoric groups who carried out the panels of rock pictures of Subtradição Sobradinho.

Keywords: Rock pictures. Sobradinho Subtradition. Boqueirão do Riacho de São Pedro. Boqueirão da Residência. Sento Sé – BA.


INTRODUÇÃO

A Arqueologia estuda as sociedades pretéritas, buscando entendê-las a partir da sua cultura material. Assim, toda evidência da presença ou atividade humana no passado é objeto de estudo dessa ciência. Dentre os testemunhos arqueológicos, destacam-se os registros rupestres que são vestígios encontrados onde as condições de preservação foram favoráveis e que podem ser utilizados na identificação e segregação de grupos pré-históricos.

Os registros rupestres constituem um sistema de comunicação social. Eles são portadores de uma mensagem que não pode ser compreendida atualmente porque o código social dos grupos que os fizeram perdeu-se no tempo. Contudo, pode-se reconhecer a identidade dos seus autores com base no reconhecimento de padrões, pois se entende que os registros rupestres não são a manifestação de um indivíduo, mas de um grupo ao qual o indivíduo pertence.

A identificação de padrões permite a filiação de um conjunto gráfico a uma tradição. Tradição é uma categoria que pretende ordenar registros gráficos produzidos por grupos que compartilhavam de uma mesma identidade cultural.

A observação de mudanças na representação gráfica de um mesmo tema associada à distribuição geográfica permite a distinção de subtradições, que são modificações de uma tradição, em consequência do contato dos grupos com outros tipos de ambiente (PESSIS, 1992).

O presente trabalho teve como objetivo analisar o padrão de reconhecimento e a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Pedro e do Boqueirão da Residência, no município de Sento Sé – BA. A pesquisa foi realizada com o intuito de classificar o conjunto de pinturas dos boqueirões em uma hipotética tradição e em uma subtradição, tendo em vista que essas classificações são necessárias para se chegar à identificação dos grupos responsáveis por tais registros gráficos.

Kestering (2007) identificou, na região de Sobradinho - BA, um padrão de reconhecimento e um padrão cenográfico semelhantes a conjuntos de pinturas rupestres identificados em todo o Vale do São Francisco. Classificou o conjunto analisado na hipotética Tradição São Francisco. Segundo Prous (1992), na Tradição São Francisco:

Os grafismos abstratos (geométricos) sobrepujam amplamente em quantidade os zoomorfos e antropomorfos, perfazendo entre 80% e 100% das sinalações. Na quase totalidade dos casos (excluindo-se o estilo mais antigo), a utilização da bicromia é intensa nas figuras pintadas. Os raros zoomorfos são quase que exclusivamente peixes, pássaros, cobras, sáurios e talvez tartarugas. Notável é a ausência dos cervídeos; não existe nenhuma cena, mesmo de tipo ‘implícito’, mas existem, por vezes, trocadilhos entre biomorfos e sinais (na região de Montalvânia).

A identificação de um padrão temático dominante permitiu a Kestering (2007), também, filiar o conjunto gráfico estudado na Subtradição Sobradinho. Esta é definida por ele como apresentando as seguintes características:

Os grafismos da temática dominante da Subtradição Sobradinho apresentam traços contínuos, em diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou da esquerda para a direita e vice-versa, quando verticais. Neles identificam-se três padrões técnico-temáticos, um é dominante nas altas, outro, nas médias e o terceiro, nas baixas vertentes.

Levando-se em conta a proximidade dos sítios arqueológicos pesquisados nesse trabalho com a área estudada por Kestering (2007), levantou-se a hipótese de que as pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Pedro e do Boqueirão da Residência pertenceriam à Tradição São Francisco e à Subtradição Sobradinho.

Justifica-se a necessidade dessa pesquisa porque os resultados obtidos com o estudo dos grafismos rupestres desses boqueirões permitirão a comparação com os resultados obtidos por Kestering, delimitando as fronteiras da Subtradição Sobradinho.

 

1. RECONHECIMENTO DE IDENTIDADES PRE-HISTORICAS

Os registros rupestres podem ser entendidos como marcadores de memória porque se acredita que seus autores executaram-nos com a intenção de comunicar suas escolhas e preferências, transmitidas através de suas tradições (1) (CASTRO, 2009). Marcadores de memória podem ser caracterizados como atributos de identidade dos grupos humanos pré-históricos.

1. Tradição, nesse contexto, é a transmissão de costumes ou valores que constituem a memória coletiva ou grupal.


As identidades são fenômenos sociais construídos na relação entre semelhanças e diferenças. Um grupo expressa sua identidade por meio das suas formas de representação. Não existem identidades fora da representação porque essas são formas de apreensão da realidade, de mostrar e demarcar as identidades em relação aos outros (CASTRO, 2009).

A identidade torna-se acessível aos outros através da linguagem. Não apenas a linguagem verbal, mas também a não verbal, através de posturas e gestos (LOPES, 2002 apud CASTRO, 2009). Dentre essas formas de linguagem não verbal estão os registros rupestres que podem ser estudados como uma ferramenta para o reconhecimento de grupos pré-históricos.

Nessa pesquisa, defende-se que não é possível, por meio do estudo dos registros rupestres, perceber a identidade individual, sendo apenas possível atingir a identidade do grupo. Os autores das pinturas rupestres são dependentes do meio (ambiental e social) em que vivem e suas expressões culturais resultam de um conjunto de ações aprovadas pelo seu grupo, Tudo o que acontece na vida cotidiana, sem a aprovação do grupo, não passa de expressões fortuitas, sem padronização (DUVIGNAUD, 1993 apud  KESTERING, 2007).

As pesquisadoras Martin e Guidon por três décadas dedicaram-se a estudar e classificar pinturas rupestres do Nordeste brasileiro em tradições, subtradições e estilos. Em artigo publicado em 2010, propõem, porém, suprimir a utilização dessas classificações para os registros rupestres.

Uma das justificativas que utilizam é a dificuldade que há em fixar os limites de uma tradição. Para ilustrar esse problema, essas pesquisadoras falam das tradições São Francisco e Nordeste. Estas foram estabelecidas, na década de 1970, a partir de estudos restritos aos conjuntos gráficos do Parque Nacional Serra da Capivara e do Vale do Rio São Francisco. Nos anos 1980, acharam-se painéis de pinturas rupestres da Tradição Nordeste na Região do Seridó, Rio Grande do Norte. Pesquisas posteriores mostraram, também, que registros rupestres do Mato Grosso, Tocantins e Minas Gerais poderiam ser incluídos na mesma Tradição Nordeste. Da mesma forma a Tradição São Francisco, identificada inicialmente na região do Alto São Francisco, também tem sido identificada em regiões do médio vale desse rio, misturando-se e/ou confundindo-se com a Tradição Agreste.

Outro argumento que sustenta esse ponto de vista é o de que muitos arqueólogos associam e atribuem os registros rupestres a uma tradição de forma direta e corriqueira, sem ao menos realizarem uma análise pormenorizada e detalhada dos grafismos rupestres dos sítios arqueológicos. Essas pesquisadoras ressaltam que hoje estão disponíveis novas técnicas que possibilitam observar os dados com maior precisão. Os avanços tecnológicos permitem perceber atualmente pinturas e sobreposições que antes não eram observadas e novos métodos de análise possibilitam o reconhecimento dos pigmentos utilizados na execução dos grafismos. Elas defendem a necessidade de se entender as estratégias de sobrevivência dos grupos. Para chegar a isso é preciso identificar elementos técnicos do registro. Para identificá-los utilizam-se protocolos de identificação técnica, obtêm-se dados fotogramétricos apurados, inserem-se os registros gráficos em um banco de dados e relacionam-se esses registros com os tipos de sítios, com o entorno ecológico e com a cultura material.

Defende-se neste trabalho que as categorizações são necessárias para a organização dos dados contidos nos conjuntos gráficos. Entendem-se as tradições arqueológicas como conjuntos de recorrências que expressam as normas pelas quais agem as culturas ou grupos culturais, e que orientam a produção da cultura material (RIBEIRO, 2006 apud SALVIO, 2008).

Acredita-se que existiria, em princípio, uma lógica pertinente a cada grupo cultural - não necessariamente étnico ou racial - que poderia ser “decifrada” a partir da maneira como os vestígios materiais são produzidos (SALVIO, 2008).

Ressalta-se que no ordenamento preliminar (2) dos registros rupestres realizado por Guidon (1989), tradição rupestre correspondia a horizonte cultural e servia de base para classificar também artefatos das indústrias lítica e cerâmica. Adota-se esse mesmo termo nessa pesquisa, mas com um sentido diferente.

2.Quatro classes de registros gráficos, sendo três de pintura (Tradições Nordeste, Agreste e Geométrica) e uma de gravura (Tradição Itacoatiara).


Quando Guidon realizou essa classificação, não existia contexto arqueológico (3) desvendado. Tradição era uma categoria de entrada (4). Nessa classe agrupavam-se tipos de registros gráficos de acordo com a maior ou menor representação da realidade apreensível nas figuras de animais e seres humanos realizando funções da vida cotidiana ou cerimonial (MARTIN E GUIDON, 2010).

3.De acordo com Kestering (2007), contexto arqueológico é o conjunto de informações biológicas, ambientais e de cultura material vinculado aos problemas arqueológicos.
4.Segundo Silva (2008), categoria de entrada corresponde à classe de dados que permite aceder a um sistema classificatório preliminar. 

 

Compreende-se que classificar um conjunto gráfico em tradições não pode ser o procedimento inicial de uma pesquisa, mas sim o resultado de muitos estudos comparativos de grafismos contextualizados. Entende-se que é possível classificar conjuntos gráficos em tradições, somente quando se tiver contexto arqueológico desvendado em amplo espaço e cronologias que comprovem sua realização por um longo tempo. Como procedimento inicial, identifica-se o padrão de reconhecimento e o padrão cenográfico para filiação hipotética em uma tradição que deverá ser corroborada ou contrastada com o prosseguimento das pesquisas. Segundo Kestering (2005), é importante que se identifiquem tradições hipotéticas porque são os “conjuntos de sinais gráficos homólogos ou análogos que revelam particularidades peculiares dos grupos e heranças culturais comuns de grupos dissidentes ou diversificados”.

Defende-se que a dificuldade no estabelecimento dos limites de uma tradição não deve ser o motivo para a abolição desse procedimento metodológico. Todas as culturas são dinâmicas porque os grupos são sistemas abertos que realizam trocas genéticas e culturais (KESTERING, 2007). As trocas geram atributos específicos que se modificam na invariância de outros que são estruturais. É por isso que a cenografia e o padrão de reconhecimento, por serem atributos estruturais de um sistema de comunicação, são invariantes que permitem, em nível hipotético, classificar um conjunto gráfico em uma tradição. A constatação de sua permanência por um longo tempo e de sua recorrência em um amplo espaço é necessária para a sua corroboração. Assim, não é estranho que pinturas da hipotética Tradição São Francisco sejam encontradas na região do Planalto Central e em toda a extensão do Vale do Rio São Francisco. Isso apenas reforça a hipotética Tradição São Francisco.

A filiação de um conjunto de pinturas ou de gravuras em uma hipotética tradição não inviabiliza a identificação de elementos técnicos, com dados fotogramétricos apurados que permitam inseri-lo em um banco de dados que o relacione com os tipos de sítios, com o entorno ecológico e com a cultura material. Os elementos técnicos relacionados com o tempo permitem o reconhecimento de estilos na temática dominante de uma subtradição. A segregação de pinturas rupestres nessas duas subclasses não invalida a hipotética classe da tradição. Antes, pelo contrário, convalida-a.

Além do mais, o estudo dos grafismos rupestres não deve buscar entender somente as estratégias de sobrevivência dos grupos, como propõem Martin e Guidon (2010). Deve buscar reconhecer os autores desses grafismos. Para reconhecê-los, não basta estudar somente a técnica, mas todos os outros elementos que compõem esse tipo de representação.

Como o objetivo dessa pesquisa é estudar as pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Pedro e do Boqueirão da Residência para comparar os resultados com aqueles obtidos por Kestering (2007) resolveu-se legitimar os mesmos parâmetros de análise adotados por esse pesquisador. Segregam-se as pinturas rupestres desses sítios arqueológicos na classe de uma hipotética tradição e na subclasse de uma subtradição como princípio metodológico para reconhecer os grupos autores do universo gráfico analisado.

Dessa forma, as pesquisas em registro rupestre, buscando reconhecer grupos culturais, baseiam-se na análise de padrões de reconhecimento, cenografia, temática e técnica.

Reconhece-se o padrão de cenografia pela observação da composição e da distribuição espacial das pinturas no painel, no sítio e na feição de relevo. Padrões de reconhecimento são identificados pela constatação da dominância de pinturas conhecíveis, reconhecíveis e irreconhecíveis.

Grafismos conhecíveis representam elementos do mundo sensível sendo, portanto, facilmente identificados. Grafismos reconhecíveis não representam realidades conhecidas, sendo, por isso, reconhecidos nas recorrências. Grafismos irreconhecíveis são aqueles que, pela má distribuição da tinta ou pelo desgaste, não apresentam possibilidade de reconhecimento cognitivo.

O termo grafismos conhecíveis é, nesse trabalho, um sinônimo do que Pessis (1992) identificou como grafismos reconhecíveis. Aqui se utiliza o termo grafismo reconhecível como um sinônimo de grafismo puro. Não se adota este termo, utilizado por Martin (1993), por entendê-lo como generalizante. Ao falar que um grafismo é puro, por consequência, sugere-se que os demais são impuros. Assim, nesse trabalho, grafismo reconhecível substitui as denominações grafismo puro, abstrato, geométrico, simbolista ou metafórico. Grafismos irreconhecíveis não permitem análise temática, mas, na análise do padrão de cenografia, são estudados quanto a sua distribuição nos painéis e são indicadores do grau de conservação dos sítios arqueológicos.

Pelo critério da temática, identificam-se as preferências nas formas que os autores de uma determinada sociedade utilizam para representar realidades (PESSIS, 1992). Os grupos adequam seu sistema de comunicação ao seu habitat. Se a realidade muda, muda também a sua representação. Assim, mudanças na temática podem ocorrer, em consequência de contatos com outros grupos, ou mesmo por alterações climáticas ou geofísicas que modificam a paisagem (KESTERING, 2007).

A percepção de alterações na temática associadas à mudança da paisagem permite identificar subtradições. A presença de pinturas rupestres em um determinado local indica que o homem se apropriou daquele ambiente e o transformou. São muitas as áreas suscetíveis de apresentar manifestações de pinturas rupestres. Porém o fato de que nem todas tenham sido pintadas deve responder a critérios de seleção baseados em uma estratégia cultural, gerada pelos coletivos sociais que se movem em seu entorno (CAVALCANTE, 2008). Os grupos humanos escolhem os locais para realização dos grafismos não somente em função da geografia, mas também por fatores culturais. O homem culturaliza a paisagem quando lhe atribui significados simbólicos.

Entende-se que a paisagem tem uma dimensão cognitiva, que vai além da preocupação com o uso produtivo do meio de uma abordagem materialista pura: a paisagem tem um significado social e simbólico tanto quanto utilitário (RENFREW e BAHN, 2004 apud CAVALCANTE, 2008).

Nesta pesquisa busca-se identificar o padrão de reconhecimento e a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Pedro e do Boqueirão da Residência para classificá-las em uma hipotética Tradição e em uma Subtradição. Entende-se que essa abordagem é um caminho para o reconhecimento dos grupos autores de tais grafismos. Observa-se, também, a geologia e a geomorfologia dos boqueirões por se entender que os grafismos rupestres ali identificados são o reflexo da interação dos seus autores com a paisagem.

Inicialmente buscou-se identificar o padrão de reconhecimento das pinturas rupestres, classificando-as em conhecíveis, reconhecíveis e irreconhecíveis. Posteriormente buscou-se identificar ocorrências e recorrências temáticas nas pinturas conhecíveis e reconhecíveis.

Kestering (2007), na sua tese de doutoramento, Identidade dos Grupos pré-históricos de Sobradinho-BA, estabeleceu recorrências temáticas (RT) para os grafismos conhecíveis e reconhecíveis da sua unidade de pesquisa, na Área arqueológica de Sobradinho. Aquelas pinturas que não se repetiram foram classificadas com não recorrentes (NR).

Compararam-se os painéis de pinturas rupestres registrados no Boqueirão do Riacho São Pedro e no Boqueirão da Residência com aqueles estudados por Kestering, buscando perceber recorrências temáticas (RT). As pinturas que apresentaram temática correspondente com as pinturas definidas por Kestering como não recorrentes (NR) foram classificadas como recorrentes (RT), partindo do princípio de que elas já haviam sido identificadas anteriormente.

Para o estabelecimento dessas recorrências, levou-se em conta aquelas já estabelecidas por Lima Filho (2010). Este estudou as pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras, no município de Sento Sé- BA e estabeleceu recorrências (RT 70 a RT 73) a partir de correspondências dos painéis da sua área de estudo com as pinturas não recorrentes observadas por Kestering.

 

2 . O CONTEXTO GEOAMBIENTAL

O boqueirão do Riacho de São Pedro situa-se na fronteira norte da Chapada Diamantina, Formação Tombador (Fig.1). É constituído de rochas metassedimentares com conglomerado desorganizado de seixos subangulosos e arredondados de quartzo e de quartzito (Fig.2). O Boqueirão da Residência é também constituído de rochas metassedimentares da Formação Tombador, porém, com dominância de arenito e intercalações conglomeráticas (Fig.3). Segundo Angelim (1997, p. 31), “esta litofácie é interpretada como pertencente a um sistema de leques aluviais”(5).

5.Leque aluvial é um depósito de material mal selecionado e pouco trabalhado, que se forma no sopé das montanhas onde os vales encontram uma área plana, quase sempre coincidente com uma planície ou com uma área lacustre.

 

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Figura 1 – Situação geológica dos boqueirões do Riacho de
São Pedro e da Residência
(Fonte: Angelim 1997, modificado pelos autores)
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Figura 2 – Conglomerado desorganizado do Boqueirão do Riacho de São Pedro
(Foto dos autores)
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Figura 3 – Intercalação conglomerática nas rochas do Boqueirão da Residência
(Foto dos autores)

 

Os boqueirões do Riacho de São Pedro e da Residência são entalhamentos resultantes da dissecação fluvial. A dissecação fluvial erodiu, durante milhões de anos, o conjunto de rochas das serras de São Pedro e de São Francisco.

Os painéis de pintura rupestre do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência estão expostos a diversos agentes que promovem a degradação dos grafismos. As pinturas estão comprometidas pela ação de agentes naturais, como água, vento, insetos, raízes de plantas fixas nos suportes e pela degradação por fatores antrópicos.

Os registros gráficos são vestígios importantes para o estudo de grupos pretéritos, mas não são valorizados porque não há na população em geral a consciência da importância desse patrimônio, já que não existem políticas de conservação e de educação ambiental no município de Sento Sé – BA.

 

3. ANÁLISE, RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 PADRÃO DE RECONHECIMENTO

Nos dois sítios arqueológicos do Boqueirão do Riacho de São Pedro, identificaram-se 28 painéis, correspondendo a um universo vestigial de 111 unidades de pinturas rupestres. Tais unidades foram analisadas por meio de critérios qualitativos e quantitativos, objetivando identificar o padrão de reconhecimento. A análise permitiu constatar que há dominância de grafismos reconhecíveis. No universo de 111 pinturas, percebeu-se que cinco são conhecíveis, 76 reconhecíveis e 29 irreconhecíveis.Nos dois sítios arqueológicos do Boqueirão da Residência registrou-se 39 painéis de pinturas rupestres, correspondendo a um universo vestigial de 115 unidades gráficas. Constatou-se a dominância de grafismos reconhecíveis. Percebeu-se que 5 são conhecíveis, 80 reconhecíveis e 30 irreconhecíveis.

 

3.2 TEMÁTICA

3.2.1 Boqueirão do Riacho de São Pedro

Das seis pinturas conhecíveis, todas representam temáticas recorrentes. Elas correspondem às temáticas identificadas por Kestering (2007) com os códigos RT 01 (antropomorfo de braços erguidos) e RT 10 (mamífero). (Tab. 1; Fig. 4 a 6).

 

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Tabela 1 – Classificação dos grafismos conhecíveis com base na temática

 

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Figura 4 – Recorrência temática – RT 01. Antropomorfo de braços erguidos.
Olho D’Água - 002.6. (Fonte: Kestering, 2007) São Pedro – 009.2. Painel 15

Figura 5 – Recorrência temática – RT 06. Pássaro de asas fechadas. São Gonçalo – 014.9 (Fonte: Kestering, 2007)  São Pedro – 009.2. Painel 06.

Figura 6 – Recorrência temática – RT – 10. Mamífero. São Gonçalo - 014.8.
Painel 03  (Fonte: Kestering, 2007)
. São Pedro - 009.2. Painel 06

 

Dos 76 grafismos reconhecíveis, 66 representam temáticas recorrentes, três apresentam temáticas não recorrentes e sete apresentam temática não identificável devido o alto grau de deterioração dos painéis (Tab. 2; Fig. 7 e 8). Sabe-se que tal grafismo é reconhecível pela identificação de alguns traços.

 

Tabela 2 – Recorrências temáticas dos grafismos reconhecíveis
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Figura 7 – Recorrência temática – RT 13. São Gonçalo - 014.8. Painel 02
(Fonte: Kestering, 2007)
São Pedro - 009.2. Painel 16
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Figura 8 - Recorrência temática - RT 21. Brejo de Dentro – 017.16. Painel 13
(Fonte: Kestering, 2007)  São Pedro - 009.2. Painel 06

 

3.2.2 Boqueirão da Residência

Dos cinco grafismos conhecíveis identificados no Boqueirão da Residência, três representam temáticas recorrentes e dois representam temáticas não recorrentes (Tab 3; Fig. 9 e 10). Identificou-se um antropomorfo miniatural redondo (RT - 04), um pássaro de asas fechadas (RT – 06) e um quelônio (RT – 11).

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Tabela 3 – Classificação dos grafismos conhecíveis com base na temática.
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Figura 9 Recorrência temática – RT 04. São Gonçalo – 014.11
(Fonte: Kestering, 2007)
 Residência – 012.2. Painel 24
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Figura 10 – Recorrência Temática – RT 11. Olho D’Água – 002.6
(Fonte: Kestering, 2007) Residência – 012.2. Painel 11

 

Dos 80 grafismos reconhecíveis identificados no Boqueirão da Residência, 67 representam temáticas recorrentes, 8 apresentam temáticas não recorrentes e 5 apresentam temática não identificável. (Tabela 4; Fig. 11 e 13)

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Tabela 4 – Recorrências temáticas dos grafismos reconhecíveis
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Figura 11 - Recorrência Temática – RT 12
Melgueira – 026.4. (Fonte: Kestering, 2007)      Residência – 012.2. Painel 27
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Figura 12 – Recorrência temática – RT 16.s Melgueira – 026.23
(Fonte: Kestering, 2007) Residência – 012.2. Painel 18

 

3  DISCUSSÃO

A análise das pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência, com base no padrão de reconhecimento, permitiu constatar a dominância de grafismos reconhecíveis (puros, geométricos, abstratos, figurativos ou metafóricos). Essa constatação permitiu filiar o universo gráfico desses boqueirões à hipotética Tradição São Francisco.

Percebeu-se que a temática dominante da Subtradição Sobradinho (RT12), representada por traços contínuos, em diagonal ascendente e descendente, quando horizontais, ou da esquerda para a direita e vice-versa, quando verticais, é subdominante nos dois boqueirões analisados. A temática 21 é dominante no Boqueirão do Riacho de São Pedro com 13 recorrências e a temática 16 é dominante no Boqueirão da Residência com 22 recorrências. A temática 16 é ausente no Boqueirão do Riacho São Pedro e a temática 21 tem apenas uma unidade no Boqueirão da Residência.

A temática dominante da Subtradição Sobradinho não é a mais recorrente se for considerada cada feição de relevo isoladamente. Além disso, a geologia desses boqueirões difere da área em que Kestering (2007) estabeleceu essa subtradição. Os boqueirões aqui estudados, apesar de serem da Formação Tombador, são constituídos de rochas conglomeráticas, enquanto aqueles estudados por Kestering (2007) são de arenito silicificado. Essas constatações justificariam a não filiação das pinturas do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência à Subtradição Sobradinho.

Entretanto, ressalta-se que, quando se somam as unidades temáticas do conjunto gráfico do Boqueirão do Riacho de São Pedro com as do conjunto gráfico do Boqueirão da Residência, percebe-se que a temática mais recorrente é a que corresponde à dominante na Subtradição Sobradinho (RT - 12).

Além disso, percebeu-se também que a temática dominante no Boqueirão da Residência (RT 16) corresponde à subdominante na área estudada por Kestering (2007) e na área em que Lima Filho (2010) identificou a Subtradição Sobradinho.

Quanto ao Boqueirão do Riacho de São Pedro, observou-se que a diferença entre a recorrência dominante (RT 21) e a subdominante (RT12) é de apenas três unidades gráficas.

Ressalta-se que a geologia mudou, mas o ambiente é semelhante, vez que é uma área contígua da Área Arqueológica de Sobradinho. A geologia é somente um dos elementos que constitui a paisagem, já que as escolhas para os locais de realização das pinturas continuam sendo boqueirões.

A mudança somente da geologia não requer grandes adaptações que resultem em modificações no modo de representar os grafismos rupestres. A interação entre o homem e a paisagem não se altera por conta da mudança da geologia, mas em função das significações que o homem atribui à paisagem.

Essas constatações corroboram a hipótese de que os sítios arqueológicos localizados no Boqueirão do Riacho São Pedro e no Boqueirão da Residência pertencem à Subtradição Sobradinho. A recorrência da temática subdominante (RT16) reforça esta proposição.

Para contrastar a filiação dos conjuntos de grafismos do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência à hipotética Tradição São Francisco necessita-se de datações que comprovem sua realização por longo tempo.

Além disso, é preciso intensificar a pesquisa de grafismos rupestres em todo o vale e regiões do entorno. A intensificação das pesquisas em boqueirões próximos aos analisados nessa pesquisa permitirá comparar resultados e verificar a confiabilidade das proposições feitas nesse trabalho.

Sugere-se que se promova ampla divulgação do patrimônio arqueológico do Município de Sento Sé, conscientizando e conclamando a população para a sua preservação.

¿Preguntas, comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com

 

Cómo citar este artículo:

de Castro Alves, Rakel y Kestering, Celito. Padrão de reconhecimento
e temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho de
São Pedro e do Boqueirão da Residência, no município de Sento Sé – BA
.
En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/boqueirao.html

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REFERENCIAS

 

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CALDERÓN, Valentin; JÁCOME, Yara Dulce Bandeira de Ataíde; SOARES, Ivan Dorea Cancio. Relatório das atividades de campo do Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico. 1977.

CASTRO, Viviane Maria Cavalcanti de. Marcadores de identidades coletivas no contexto funerário pré-histórico no Nordeste do Brasil. UFPE. Recife. (Tese de Doutoramento). 2009

CAVALCANTE, Munique Cardoso. As pinturas da Lapa da dança no contexto da arte rupestre da Serra do Cabral – Minas Gerais – Brasil. 2008.DE LIMA FILHO, Sebastião Lacerda. Temática Dominante nas Pinturas Rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras, no Município de Sento Sé – BA. UNIVASF. São Raimundo Nonato. 2010

GUIDON, Niède. Tradições Rupestres da Área Arqueológica de São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil. In: CLIO Arqueológica, Recife, n. 5, p. 5-10, 1989

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