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A identidade torna-se
acessível aos outros através da linguagem. Não apenas a linguagem verbal, mas
também a não verbal, através de posturas e gestos (LOPES, 2002 apud CASTRO, 2009). Dentre essas formas
de linguagem não verbal estão os registros rupestres que podem ser estudados
como uma ferramenta para o reconhecimento de grupos pré-históricos.
Nessa pesquisa, defende-se que não é possível, por meio do
estudo dos registros rupestres, perceber a identidade individual, sendo apenas possível
atingir a identidade do grupo. Os autores das pinturas rupestres são
dependentes do meio (ambiental e social) em que vivem e suas expressões
culturais resultam de um conjunto de ações aprovadas pelo seu grupo, Tudo
o que acontece na vida cotidiana, sem a aprovação do grupo, não passa de
expressões fortuitas, sem padronização (DUVIGNAUD, 1993 apud KESTERING, 2007).
As pesquisadoras Martin e Guidon por três décadas
dedicaram-se a estudar e classificar pinturas rupestres do Nordeste brasileiro
em tradições, subtradições e estilos. Em artigo publicado em 2010, propõem,
porém, suprimir a utilização dessas classificações para os registros rupestres.
Uma das justificativas que utilizam é a dificuldade que há
em fixar os limites de uma tradição. Para ilustrar esse problema, essas
pesquisadoras falam das tradições São Francisco e Nordeste. Estas foram estabelecidas,
na década de 1970, a partir de estudos restritos aos conjuntos gráficos do
Parque Nacional Serra da Capivara e do Vale do Rio São Francisco. Nos anos
1980, acharam-se painéis de pinturas rupestres da Tradição Nordeste na Região
do Seridó, Rio Grande do Norte. Pesquisas posteriores mostraram, também, que
registros rupestres do Mato Grosso, Tocantins e Minas Gerais poderiam ser
incluídos na mesma Tradição Nordeste. Da mesma forma a Tradição São Francisco,
identificada inicialmente na região do Alto São Francisco, também tem sido
identificada em regiões do médio vale desse rio, misturando-se e/ou
confundindo-se com a Tradição Agreste.
Outro
argumento que sustenta esse ponto de vista é o de que muitos arqueólogos
associam e atribuem os registros rupestres a uma tradição de forma direta e
corriqueira, sem ao menos realizarem uma análise pormenorizada e detalhada dos
grafismos rupestres dos sítios arqueológicos. Essas pesquisadoras ressaltam que
hoje estão disponíveis novas técnicas que possibilitam observar os dados com
maior precisão. Os avanços tecnológicos permitem perceber atualmente pinturas e
sobreposições que antes não eram observadas e novos métodos de análise
possibilitam o reconhecimento dos pigmentos utilizados na execução dos
grafismos. Elas defendem a necessidade de se entender as estratégias de
sobrevivência dos grupos. Para chegar a isso é preciso identificar elementos
técnicos do registro. Para identificá-los utilizam-se protocolos de
identificação técnica, obtêm-se dados fotogramétricos apurados, inserem-se os
registros gráficos em um banco de dados e relacionam-se esses registros com os
tipos de sítios, com o entorno ecológico e com a cultura material.
Defende-se neste trabalho que as categorizações são
necessárias para a organização dos dados contidos nos conjuntos gráficos.
Entendem-se as tradições arqueológicas como
conjuntos de recorrências que expressam as normas pelas quais agem as culturas
ou grupos culturais, e que orientam a produção da cultura material (RIBEIRO,
2006 apud SALVIO, 2008).
Acredita-se
que existiria, em princípio, uma lógica pertinente a cada grupo cultural - não
necessariamente étnico ou racial - que poderia ser “decifrada” a partir da
maneira como os vestígios materiais são produzidos (SALVIO, 2008).
Ressalta-se
que no ordenamento preliminar (2) dos registros rupestres realizado por Guidon (1989), tradição rupestre
correspondia a horizonte cultural e servia de base para classificar também
artefatos das indústrias lítica e cerâmica. Adota-se esse mesmo termo nessa
pesquisa, mas com um sentido diferente.
Compreende-se
que classificar um conjunto gráfico em tradições não pode ser o procedimento inicial de uma pesquisa,
mas sim o resultado de muitos estudos comparativos de grafismos
contextualizados. Entende-se que é possível classificar conjuntos
gráficos em tradições, somente quando se tiver contexto arqueológico desvendado
em amplo espaço e cronologias que comprovem sua realização por um longo tempo.
Como procedimento inicial, identifica-se o padrão de reconhecimento e o padrão
cenográfico para filiação hipotética em uma tradição que deverá ser corroborada
ou contrastada com o prosseguimento das pesquisas. Segundo Kestering (2005), é
importante que se identifiquem tradições hipotéticas porque são os “conjuntos de sinais gráficos homólogos ou
análogos que revelam particularidades peculiares dos grupos e heranças
culturais comuns de grupos dissidentes ou diversificados”.
Defende-se que a dificuldade no
estabelecimento dos limites de uma tradição não deve ser o motivo para a
abolição desse procedimento metodológico. Todas as culturas são dinâmicas
porque os grupos são sistemas abertos que realizam trocas genéticas e culturais
(KESTERING, 2007). As trocas geram atributos específicos que se modificam na
invariância de outros que são estruturais. É por isso que a cenografia e o
padrão de reconhecimento, por serem atributos estruturais de um sistema de
comunicação, são invariantes que permitem, em nível hipotético, classificar um
conjunto gráfico em uma tradição. A constatação de sua permanência por um longo
tempo e de sua recorrência em um amplo espaço é necessária para a sua
corroboração. Assim, não é estranho que pinturas da hipotética Tradição São
Francisco sejam encontradas na região do Planalto Central e em toda a extensão
do Vale do Rio São Francisco. Isso apenas reforça a hipotética Tradição São
Francisco.
A filiação de um conjunto de pinturas ou de gravuras em uma
hipotética tradição não inviabiliza a
identificação de elementos técnicos, com dados fotogramétricos apurados que
permitam inseri-lo em um banco de dados que o relacione com os tipos de sítios,
com o entorno ecológico e com a cultura material. Os elementos técnicos
relacionados com o tempo permitem o reconhecimento de estilos na temática
dominante de uma subtradição. A segregação de pinturas rupestres nessas duas
subclasses não invalida a hipotética classe da tradição. Antes, pelo contrário,
convalida-a.
Além do mais, o estudo dos grafismos rupestres não deve
buscar entender somente as estratégias de sobrevivência dos grupos, como
propõem Martin e Guidon (2010). Deve buscar reconhecer os autores desses
grafismos. Para reconhecê-los, não basta estudar somente a técnica, mas todos
os outros elementos que compõem esse tipo de representação.
Como o objetivo dessa pesquisa é
estudar as pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho São Pedro e do Boqueirão
da Residência para comparar os resultados com aqueles obtidos por Kestering
(2007) resolveu-se legitimar os mesmos parâmetros de análise adotados por esse
pesquisador. Segregam-se as pinturas rupestres desses sítios arqueológicos na
classe de uma hipotética tradição e na subclasse de uma subtradição como
princípio metodológico para reconhecer os grupos autores do universo gráfico
analisado.
Dessa forma, as pesquisas em registro rupestre, buscando
reconhecer grupos culturais, baseiam-se na análise de padrões de
reconhecimento, cenografia, temática e técnica.
Reconhece-se o padrão de cenografia pela observação da
composição e da distribuição espacial das pinturas no painel, no sítio e na
feição de relevo. Padrões de reconhecimento são identificados pela constatação
da dominância de pinturas conhecíveis, reconhecíveis e irreconhecíveis.
Grafismos
conhecíveis representam elementos do mundo sensível sendo, portanto, facilmente
identificados. Grafismos reconhecíveis não representam realidades conhecidas,
sendo, por isso, reconhecidos nas recorrências. Grafismos irreconhecíveis são
aqueles que, pela má distribuição da tinta ou pelo desgaste, não apresentam
possibilidade de reconhecimento cognitivo.
O termo grafismos conhecíveis é, nesse trabalho, um sinônimo
do que Pessis (1992) identificou como grafismos reconhecíveis. Aqui se utiliza
o termo grafismo reconhecível como um sinônimo de grafismo puro. Não se adota
este termo, utilizado por Martin (1993), por entendê-lo como generalizante. Ao
falar que um grafismo é puro, por consequência, sugere-se que os demais são
impuros. Assim, nesse trabalho, grafismo reconhecível substitui as denominações
grafismo puro, abstrato, geométrico, simbolista ou metafórico. Grafismos
irreconhecíveis não permitem análise temática, mas, na análise do padrão de
cenografia, são estudados quanto a sua distribuição nos painéis e são
indicadores do grau de conservação dos sítios arqueológicos.
Pelo
critério da temática, identificam-se as preferências nas formas que os autores
de uma determinada sociedade utilizam para representar realidades (PESSIS,
1992). Os grupos adequam seu sistema de comunicação ao seu habitat. Se a
realidade muda, muda também a sua representação. Assim, mudanças na temática
podem ocorrer, em consequência de contatos com outros grupos, ou mesmo por
alterações climáticas ou geofísicas que modificam a paisagem (KESTERING, 2007).
A
percepção de alterações na temática associadas à mudança da paisagem permite
identificar subtradições. A presença de pinturas rupestres em um determinado
local indica que o homem se apropriou daquele ambiente e o transformou. São muitas as áreas suscetíveis de apresentar manifestações
de pinturas rupestres. Porém o fato de que nem todas tenham sido pintadas deve
responder a critérios de seleção baseados em uma estratégia cultural, gerada
pelos coletivos sociais que se movem em seu entorno (CAVALCANTE, 2008). Os
grupos humanos escolhem os locais para realização dos grafismos não somente em
função da geografia, mas também por fatores culturais. O homem culturaliza a
paisagem quando lhe atribui significados simbólicos.
Entende-se que a paisagem tem uma dimensão cognitiva, que
vai além da preocupação com o uso produtivo do meio de uma abordagem
materialista pura: a paisagem tem um significado social e simbólico tanto quanto
utilitário (RENFREW e BAHN, 2004 apud CAVALCANTE, 2008).
Nesta pesquisa busca-se identificar o padrão de
reconhecimento e a temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do
Riacho São Pedro e do Boqueirão da Residência para classificá-las em uma
hipotética Tradição e em uma Subtradição. Entende-se que essa abordagem é um
caminho para o reconhecimento dos grupos autores de tais grafismos. Observa-se,
também, a geologia e a geomorfologia dos boqueirões por se entender que os
grafismos rupestres ali identificados são o reflexo da interação dos seus
autores com a paisagem.
Inicialmente buscou-se identificar o padrão de
reconhecimento das pinturas rupestres, classificando-as em conhecíveis,
reconhecíveis e irreconhecíveis. Posteriormente buscou-se identificar
ocorrências e recorrências temáticas nas pinturas conhecíveis e reconhecíveis.
Kestering (2007), na sua tese de doutoramento, Identidade dos Grupos pré-históricos de
Sobradinho-BA, estabeleceu
recorrências temáticas (RT) para os grafismos conhecíveis e reconhecíveis da
sua unidade de pesquisa, na Área arqueológica de Sobradinho. Aquelas pinturas
que não se repetiram foram classificadas com não recorrentes (NR).
Compararam-se os painéis de pinturas rupestres registrados
no Boqueirão do Riacho São Pedro e no Boqueirão da Residência com aqueles estudados
por Kestering, buscando perceber recorrências temáticas (RT). As pinturas que
apresentaram temática correspondente com as pinturas definidas por Kestering
como não recorrentes (NR) foram classificadas como recorrentes (RT), partindo
do princípio de que elas já haviam sido identificadas anteriormente.
Para o estabelecimento dessas recorrências, levou-se em
conta aquelas já estabelecidas por Lima Filho (2010). Este estudou as pinturas
rupestres do Boqueirão do Riacho das Traíras, no município de Sento Sé- BA e
estabeleceu recorrências (RT 70 a RT 73) a partir de correspondências dos
painéis da sua área de estudo com as pinturas não recorrentes observadas por
Kestering.
2 .
O CONTEXTO GEOAMBIENTAL
Os boqueirões do Riacho de São Pedro e da Residência são
entalhamentos resultantes da dissecação fluvial. A dissecação fluvial erodiu,
durante milhões de anos, o conjunto de rochas das serras de São Pedro e de São
Francisco.
Os painéis de pintura rupestre do Boqueirão do Riacho de São
Pedro e do Boqueirão da Residência estão expostos a diversos agentes que
promovem a degradação dos grafismos. As pinturas estão comprometidas pela ação
de agentes naturais, como água, vento, insetos, raízes de plantas fixas nos
suportes e pela degradação por fatores antrópicos.
Os registros gráficos
são vestígios importantes para o estudo de grupos pretéritos, mas não são
valorizados porque não há na população em geral a consciência da importância
desse patrimônio, já que não existem políticas de conservação e de educação
ambiental no município de Sento Sé – BA.
3. ANÁLISE,
RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.2 TEMÁTICA
Das seis pinturas conhecíveis, todas representam temáticas
recorrentes. Elas correspondem às temáticas identificadas por Kestering (2007)
com os códigos RT 01 (antropomorfo de braços erguidos) e RT 10 (mamífero).
(Tab. 1; Fig. 4 a 6).
Dos 76 grafismos reconhecíveis, 66 representam temáticas
recorrentes, três apresentam temáticas não recorrentes e sete apresentam
temática não identificável devido o alto grau de deterioração dos painéis (Tab.
2; Fig. 7 e 8). Sabe-se que tal grafismo é reconhecível pela identificação de
alguns traços.
Dos 80 grafismos reconhecíveis identificados no
Boqueirão da Residência, 67 representam temáticas recorrentes, 8 apresentam
temáticas não recorrentes e 5 apresentam temática não identificável. (Tabela 4;
Fig. 11 e 13)
Percebeu-se que a temática dominante da Subtradição Sobradinho
(RT12), representada por traços contínuos, em diagonal
ascendente e descendente, quando horizontais, ou da esquerda para a direita e
vice-versa, quando verticais, é subdominante nos dois boqueirões analisados. A
temática 21 é dominante no Boqueirão do Riacho de São Pedro com 13 recorrências
e a temática 16 é dominante no Boqueirão da Residência com 22 recorrências. A
temática 16 é ausente no Boqueirão do Riacho São Pedro e a temática 21 tem
apenas uma unidade no Boqueirão da Residência.
A
temática dominante da Subtradição Sobradinho não é a mais recorrente se for
considerada cada feição de relevo isoladamente. Além disso, a geologia desses
boqueirões difere da área em que Kestering (2007) estabeleceu essa subtradição.
Os boqueirões aqui estudados, apesar de serem da Formação Tombador, são
constituídos de rochas conglomeráticas, enquanto aqueles estudados por
Kestering (2007) são de arenito silicificado. Essas constatações justificariam
a não filiação das pinturas do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão
da Residência à Subtradição Sobradinho.
Entretanto,
ressalta-se que, quando se somam as unidades temáticas do conjunto gráfico do
Boqueirão do Riacho de São Pedro com as do conjunto gráfico do Boqueirão da
Residência, percebe-se que a temática mais recorrente é a que corresponde à
dominante na Subtradição Sobradinho (RT - 12).
Além
disso, percebeu-se também que a temática dominante no Boqueirão da Residência
(RT 16) corresponde à subdominante na área estudada por Kestering (2007) e na
área em que Lima Filho (2010) identificou a Subtradição Sobradinho.
Quanto
ao Boqueirão do Riacho de São Pedro, observou-se que a diferença entre a
recorrência dominante (RT 21) e a subdominante (RT12) é de apenas três unidades
gráficas.
Ressalta-se
que a geologia mudou, mas o ambiente é semelhante, vez que é uma área contígua
da Área Arqueológica de Sobradinho. A geologia é somente um dos elementos que
constitui a paisagem, já que as escolhas para os locais de realização das
pinturas continuam sendo boqueirões.
A mudança
somente da geologia não requer grandes adaptações que resultem em modificações
no modo de representar os grafismos rupestres. A interação entre o homem e a
paisagem não se altera por conta da mudança da geologia, mas em função das
significações que o homem atribui à paisagem.
Essas
constatações corroboram a hipótese de que os sítios arqueológicos localizados
no Boqueirão do Riacho São Pedro e no Boqueirão da Residência pertencem à
Subtradição Sobradinho. A recorrência da temática subdominante (RT16) reforça
esta proposição.
Para contrastar a filiação dos conjuntos de grafismos do
Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência à hipotética
Tradição São Francisco necessita-se de datações que comprovem sua realização
por longo tempo.
Além disso, é preciso intensificar a pesquisa de grafismos
rupestres em todo o vale e regiões do entorno. A intensificação das pesquisas
em boqueirões próximos aos analisados nessa pesquisa permitirá comparar
resultados e verificar a confiabilidade das proposições feitas nesse trabalho.
Sugere-se que se promova ampla
divulgação do patrimônio arqueológico do Município de Sento Sé, conscientizando
e conclamando a população para a sua preservação.
—¿Preguntas, comentarios? escriba a: rupestreweb@yahoogroups.com—
Cómo citar este artículo: de Castro Alves, Rakel y Kestering, Celito. Padrão de reconhecimentoe temática dominante nas pinturas rupestres do Boqueirão do Riacho de São Pedro e do Boqueirão da Residência, no município de Sento Sé – BA. En Rupestreweb, http://www.rupestreweb.info/boqueirao.html 2013
REFERENCIAS
ANGELIM, Luiz Alberto de Aquino. Programa Levantamentos Geológicos Básicos do
Brasil Petrolina: Folha SC. 24-V-C. Escala 1/250.000. Brasília: CPRM. 1997. 120p.
KESTERING, Celito. Registros Rupestres na Área Arqueológica de Sobradinho. UFPE.
Recife. (Dissertação de Mestrado). 2001.
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